Negritude na roda

 

 

O poder da renovação do 35º Festival de Cinema de Gramado – evidenciado na seleção dos filmes em competição – multiplicou-se numa curiosa situação: a festejada chegada do ator Lázaro Ramos teve desdobramentos que ultrapassaram a mera promoção do longa concorrente Cobrador – In god we trust (de Paul Leduc, baseado em livro de Rubem Fonseca), do qual é protagonista. Três anos depois da polêmica em torno de Filhas do vento (de Joel Zito Araújo), multipremiado com seis Kikitos para o elenco predominantemente negro, a questão racial pulsa forte num evento paralelo (mas nada periférico) do 15º Gramado Cine Vídeo, atento à temática Cine Social – Cultura & Inclusão.

 

“Percebo que, em debates, as pessoas normalmente não se escutam, trazendo idéias fixas. Minha contribuição talvez seja a de entrar com o ouvido”, diz Lázaro, antes de tomar parte na discussão compartilhada com os atores Rocco Pitanga, Antônio Pitanga e Zózimo Bulbul (esse, ícone, como o primeiro protagonista negro de novela nacional). À frente de um filme em que “a sociedade está lhe devendo tudo: dinheiro, saneamento básico, amor, cultura e beijo na boca”, Lázaro se prepara para Duas caras, a nova novela das oito (Globo), em que, na pele de Evilásio, se dividirá entre os amores de Débora Falabella e Sheron Menezes. “Não enfrento nem metade dos problemas que a geração do Milton Gonçalves driblou. Quando a gente fala em cinema negro, não cita apenas atores, é uma conta que envolve diretores e equipe técnica. A gente tem um ouro na mão: há uma diversidade temática que enriquece uma dramaturgia ainda pouco explorada. É uma questão de como entreter com novidade”, reforça.

 

Longe de queixumes como personagens estereotipados ou cotas, Lázaro delimita outra via para a discussão: “há elementos comerciais e criativos envolvidos, uma vez que a população gosta de ver histórias cercadas por atores e diretores negros, como Cidade de Deus, Madame Satã e Cidade dos homens”.

 

No debate “natural”, o ator destaca a satisfação de “ver até onde fomos, o que já contamos, e definir como podemos e queremos ser vistos”. O “sadio” mercado em crescimento (na opinião de Lázaro) deu as caras num prévio encontro, na Sociedade Recreio Gramadense, entre 100 alunos das cercanias de Gramado e formadores de jovens das periferias cariocas, alguns deles atuantes no projeto do longa-metragem Cinco vezes favela – Agora por eles mesmos, coordenado por Cacá Diegues. Crentes na tríade cara a Lázaro – “com valorização das contribuições, convivência harmônica e oportunidades iguais” –, os jovens debateram e apresentaram produtos audiovisuais dos grupos Nós do Morro, Cinema Nosso, Observatório de Favelas e Central Única das Favelas (Cufa).

 

Caminhos cruzados

Consciente do caráter “à parte”, paralelo ao festival de cinema, Rodrigo Felha (representante da Cufa) não demonstra incômodo: “A gente tem qualidade para estar do outro lado também”. Como semente da primeira incursão audiovisual da Cufa (foi câmera de Falcão, meninos do tráfico), Felha atesta o progresso – “estarmos com ferramenta que sabemos usar, e que completou nossas atividades, como hip hop, esporte, teatro e informática”. Na Cidade de Deus, Felha registra o interesse de ao menos 400 jovens de origem heterogênea. “A troca de linguagens e experiências entre a comunidade e a classe média alta é fator importante”, reforça. Como um dos diretores do projeto cinematográfico Cinco Vezes Favela, ele garante ter à mão uma “mensagem politizada”, para o desfecho do episódio Arroz com feijão, contemplado no longa em andamento.

 

O debate Cultura Social Clube foi prestigiado ainda por Sheyla de Castro (do Nós do Morro), moradora da comunidade do Vidigal que responde por parte da produção do longa supervisionado por Diegues. Montado há 11 anos, o núcleo de vídeo da organização modificou o caminho de estimados 500 alunos. O destino dessa mão-de-obra, por sinal, aquece o debate, com a participação ainda do representante da ONG Observatório das Favelas, Márcio Blanco. “Não adianta muito passar pela formação, sem ser absorvido pelo mercado. Tudo virou um grande nicho, mas não se discute a exclusão a fundo. Já caminhamos, e agora temos muita gente capacitada para a mobilização e a intervenção no poder público”, comenta.

 

Atuante há seis anos no Complexo da Maré, Blanco diz lutar ainda pela queda de estigmas. “O terceiro setor virou um grande mercado econômico e que atende à demanda da chamada “inclusão social”. Parto do pressuposto de que, desde o nascimento, todos deveriam fazer parte da sociedade. Podemos sim, falar de desigualdade, falta de distribuição de renda, descumprimento de direitos”, avalia, no palco de exibição da Mostra de Cinema Negro, que reuniu títulos de cineastas como Sérgio Bianchi e Jefferson De. Tudo harmonizado com celebração à atriz Zezé Motta, que, além da presença em dois concorrentes aos Kikitos (com premiação amanhã, à noite), obteve ainda amplo reconhecimento na entrega do troféu Oscarito, conferido pelos organizadores do 35º Festival de Cinema de Gramado.

17/08/07

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