O objetivo é tratar questões envolvendo novas tecnologias. Criadores estão com o pé atrás.
A sociedade brasileira, da forma como está escrito na lei do direito autoral em vigor no país, encontra-se ilícita. E quase ninguém escapa. Ao realizar a cópia de um livro, filme, jogo ou transferir uma música de um CD para o aparelho MP3, o usuário vai direto para o terreno da ilegalidade. Como a grande maioria das pessoas comete esses atos sem a menor preocupação ou dor de consciência, o Ministério da Cultura (Minc) resolveu inverter a questão, colocar o dedo na ferida histórica. Depois da realização de diversos seminários, lançamento de cartilha educativa e de transformar o Conselho de Direito Autoral numa diretoria, a fase agora é de análise das propostas. Elas deverão ser transformadas num projeto de modificação da legislação atual, de modo a torná-la mais eficiente.
O debate não é novo, surgiu quando o então ministro Gilberto Gil disponibilizou parte das suas canções gratuitamente para download na internet, há sete anos, recebendo críticas de todos os lados. O objetivo do artista e político de gerar reflexão sobre a questão naquele instante foi alcançado. Era o início de um processo que mobilizou – e continua mobilizando – várias partes envolvidas. “Gil teve a sensibilidade de perceber que o mundo estava passando por uma transformação e os direitos autorais também. Foi muito incompreendido”, lembra José Vaz de Souza Filho, da Diretoria dos Direitos Autorais. Para ele, não se pode lutar contra a realidade, adotando postura semelhante à francesa. Atualmente, o país europeu tem tentado criar uma política para vigiar a internet. “No nosso entender é um equívoco total e trata-se de medida fadada ao fracasso.” O assunto não é unanimidade.
Desde que a discussão surgiu na esfera do Minc, houve setores da sociedade acusando o governo de tentar flexibilizar os direitos autorais. José Vaz garante que a posição é oposta: “Trabalhamos no sentido de reequilibrar o direito autoral para beneficiar autores e sociedade. Não se trata de enfraquecê-lo”. O fato é que, da maneira como está colocada hoje, a lei 9.610 (do direito autoral), de 1990, não tem, na prática, conseguido resolver a questão com eficiência. A intenção de medidas como permitir a cópia privada de música, filmes e livros, desde que não usada para fins comerciais, é aumentar a legitimidade da cobrança dos direitos. “A legislação atual incentiva a maioria da sociedade a encarar o autor e criador com antipatia. Não é o caso de propormos uma polícia repressiva, e sim de conceber meios para a arrecadação dos direitos fundamentais, para dinamizar a própria cultura”, explica o representante do Minc.
O descaso com a questão vem de longa data. Até 1990, a questão era regida pelo Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA). Quando Collor assumiu a Presidência, mandou extinguir o órgão que, até então, tinha 150 funcionários para cuidar do assunto em todo o Brasil. O conselho tinha o papel de formular política para o setor e funcionava como uma instância administrativa, regulando tudo que envolvesse o assunto. “Muitas questões, antes de serem encaminhadas à Justiça, eram resolvidas na esfera administrativa. A extinção do órgão deixou o Estado desarmado.” Por pouco, todo o acervo do CNDA, contendo as resoluções originais, não foi parar no lixo. Foi salvo por um servidor que o encontrou, mantendo-o no Minc esses anos todos. Quando a questão voltou à tona, esse legado foi fundamental para recuperar as lições do passado.
NOVA LEI
Pontos polêmicos
• Vai permitir a cópia privada de criações como música, filmes e livros, desde que não cause prejuízo ao titular do direito autoral.
• No corpo da nova lei, haverá instrumentos jurídicos para revisão contratual, com objetivo de melhorar a questão para os autores.
• Deseja criar uma instância administrativa, nos moldes do extinto Conselho Nacional de Direito Autoral, para acelerar a resolução de pontos divergentes, antes de a decisão chegar à Justiça.
• Pretende liberar reproduções de cópias de obras raras de bibliotecas e arquivos para fins de preservação.
• O conteúdo completo da cartilha dos direitos autorais está no site www.cultura.gov.br
Outro lado
Estão querendo avançar muito e é complicado. A lei que está aí é boa. Dez anos é um tempo curto para uma lei. Hoje, os tribunais já pacificaram as coisas no direito e, quando se está andando bem, vem o pessoal do Minc propor mudanças para tumultuar. Temos um pé atrás grande em relação ao que foi discutido nos últimos seis anos. Não é hora de realizar outra lei. A maioria absoluta dos juristas e advogados que mexem com direito autoral acha que esta legislação não deve ser modificada. A não ser em relação a pontos como a questão da cópia, que ficou restrito. Nós, da música, não nos preocupamos em tirar cópia. Usar particularmente não tem problema algum.” • Fernando Brant, compositor e presidente da União Brasileira dos Compositores
Uma parte da questão do direito autoral que o Ministério da Cultura deseja mexer foi motivada pelas alterações na Lei Rouanet, prevendo aos projetos patrocinados uma reversão dos direitos autorais para o Estado. A argumentação era de que, como se tratava de renúncia fiscal, o Estado deveria se apropriar da obra. Sou radicalmente contra. Primeiro porque se trata de uma questão universal, uma conquista de mais de três séculos e internacional. Gostaria de saber: se houvesse uma tradução da obra de Sartre financiada com dinheiro público o Estado tomaria os direitos? Trata-se de um direito intocável. Vivemos do nosso trabalho. Temos uma relação genuinamente com o povo. Se um governo ou lei quer atender o povo, quem está mais perto somos nós, os autores.” • Alcione Araújo, escritor .