A Escravidão é um crime.

A escravidão é um crime: Bases para um discurso sobre competências e cota
Henrique Cunha Júnior
Professor Titular da Universidade Federal do Ceará

A História do Brasil contada pode ser resumida num conto Macabro. Neste, o criminoso se apresenta em praça pública ainda com as mãos ensangüentadas e dentro do sinistro cinismo nos interroga:
De que crime vocês falam? Têm certeza de que a vítima existia?
Alguém mais atento ao curso da conversa pergunta indignado:
Por que o senhor esconde as mãos?
Aí passam horas num debate inútil, mas significativo do porquê dele não mostrar as mãos. Da questão central do crime e do criminoso, a história varia do porquê e se é possível duvidarmos de tão ilustre pessoa.
Bom, os dias, por vezes meses, passam e por descuido ele se apresenta ainda com as mãos ensangüentadas. Daí, nós dizemos:
Veja! As mãos estão ensangüentadas!
E eles nos dizem:
Mas não é sangue humano. È que ele tem uma granja e exerce, nas
horas vagas, entre a advocacia e a administração, a distração do ofício de estrangular galinhas.
Outro longo debate se vai. Por umas e outras fica patente que o sangue nas mãos é humano. Daí a história ganha outros contornos. Sim, é humano, mas isto não prova crime algum. Pode até ser que o sangue seja da bondade deste senhor em socorrer uma vítima moribunda. Vai aí até a arrogância em dizer que nós negros somos todos iguais. Somos ingratos, incapazes de reconhecer a ajuda, a mão estendida de quando nós esvaímos em sangue.
A explicação do porquê nós esvaímos em sangue está nas nossas brigas entre vizinhos nos cortiços e favelas, nos acertos de contas entre as guerras de gangues. Veja, vão dizer: vocês, ou seja, nós é que somos violentos. Ainda ousamos acusar tão nobres senhores de criminosos.
Mas as suas mãos continuam sujas de sangue humano, de sangue indiscutivelmente negro. Bom, é difícil dizer. Vai alegar que não sabemos se o sangue é negro ou não. Nós sabemos que é, mas a dúvida agora relançada é se o sangue é negro ou não. Evolui a duvida sobre as comprovações. Eliminada as duvidas, é negro, então, para surpresa nossa e para desgaste do debate vão perguntar se é dos negros bons ou ruins. Sim, pode ser negro, mas dos negros ruins. Na pirâmide do absurdo social vivido, o crime não vai ser moralmente condenado pelo crime, mas se foi supostamente seres bons ou ruins.
Mas as mãos continuam sujas de sangue. A nossa prolixa argumentação começa a incomodar. Alguns brancos começam a ficar preocupados que possa ser mesmo sangue humano. Uns têm a horrenda sensação da angústia que possa ser sangue humano e não apenas negro. Daí, para muitos, o fato torna-se preocupante. Na dúvida, talvez seja preciso pensar em fazer alguma justiça. Vai-se mais a fundo na história. Fica determinado que é sangue humano. Que é sangue humano negro, mas que existe também traços de sangue branco.
Seria suficiente para a condenação? Não. Fazendo uso ainda de manobras jurídicas, o criminoso das mãos ensangüentadas pergunta-nos:
– Mas se houve crime, onde está o corpo? De quem é o corpo? De onde veio este corpo?
E por falta de resposta nada se faz.
O tempo passa, mas nem tudo cicatriza. No crime, houve roubo e riquezas são processadas na continuidade dos crimes, nas ausências de justiça. Nas ausências da base ética e moral para se falar sobre os crimes, outros crimes se processam e proliferam. Vêm todos agora com mãos ensangüentadas. Alguns hoje especializados em máquinas automáticas de matar e processar vítimas, como fábricas de sanduíches, que elimina as horrendas aparições de mãos ensangüentadas.
Mais ainda, alguns senhores aparecem com as mãos ensangüentadas e nós continuamos dizendo que a escravidão foi um crime e que como crime, ela é imprescritível, inafiançável e inalienável.
Nova polêmica se forma, não sobre os fundamentais princípios humanos sobre o crime e suas conseqüências. Sobre se é possível o sangue durar nas mãos tanto tempo. Que é mais prático, moderno e civilizado partirmos para uma discussão nova. Tudo não passa de arcadismos daqueles (apontando para nós) que ficam cavando nas covas da história. Há quem vá dizer que a modernidade implica em olhar para frente. Que vai perder o jato da história quem olhar para a história passada, ou seja, para trás.
Convencidos do moderno, do limpo, do educado, do informatizado vai fundando uma geração preocupada em esquecer os crimes do escravismo. De esquecer quem nós somos como conjunto e pensando no novo paradigma da sociedade pós-industrial. O sucesso pela competência individual. É que nós estamos pensando que quase tudo foi contado. O culto é apenas aos outros lados da história que os imediatismos não nos deixam ver, muito menos antever e é daí que surgem sempre as fraquezas do meu, individual, plano estratégico de sucesso, que não é mais nada do que um plano individual quase suicida de sobrevivência.
Um dia, quase que por descuido, por simples distração em olhar para o lado e ver a cara da competição através da competência. Estava ali, a competência branca. Ela não é individual. Ela é coletiva. Ela é coletiva desde a organização para impor o escravismo até hoje de usar da fortuna produzida no escravismo criminoso, sem sentir remorso, culpa, condenação ou mesmo alguma pressão em ter uma organização para usufruto daquilo que foi esquecido. Mesmo a fábrica de sanduíche é uma organização coletiva dos mesmos, organizados nos mesmos critérios, onde as competências individuais são resultados apenas das coletivas.
A consciência da inconsciência nos fez olhar para o que não estava programado para olhar. Aí vamos ver no retrato das histórias, que as competências negras são competências resultantes das competências coletivas, reunidas nos grupos negros de resistência ao escravismo criminosos. São as Irmandades Negras do Rosário e São Benedito, de onde saíram escritores e artistas plásticos negros, juristas e outra ordem de cargos públicos constituintes da ordem de homens livres, que as irmandades conseguiam livrar tanto do escravismo, como das outras barbáries eliminadoras das qualidades humanas.
Outras competências marcantes foram os movimentos pela abolição, aí articularam-se competências negras associadas à brancos literários, à indígenas em luta pelos mesmos ideais. Foi assim que competências negras como Luís Gama e José do Patrocínio passaram para a História Nacional. No centro de uma competência coletiva dos movimentos sociais, associadas a outras das irmandades.
Daí, temos que a maior competência histórica foram os Quilombos. Competência não apenas de organizar, combater, mas de produzir. Esta competência coletiva fixa as competências individuais de Zumbi, Manoel Congo e milhares de outros líderes quilombolas. A competência coletiva foi tão grande, enorme, que realizou mais de 2000 unidades em todo território nacional. Número que superou durante muito tempo mesmo o número de municípios do país, que hoje, com todo desenvolvimento, não passa de 5000.
A competência coletiva do quilombo nos transmite pelo menos duas valiosíssimas heranças. A posse da terra, os únicos negros que têm terras numa área maior que a França e a Inglaterra juntas são as Comunidades de Quilombos. Poucas vezes esta verdade foi encarada com a importância econômica que tem. Por isso, também se explica porque tanta gente tem se organizado para roubar as terras dos Quilombos e para eliminar as marcas históricas que possibilitam o traçado histórico desses Quilombos. A outra competência coletiva que o Quilombo nos legou e que é valiosíssima e nós temos por vezes, devido a um pragmatismo irresponsável e burro, jogado no lixo é a marca Quilombo. Ela é um símbolo forte das mais fortes organizações negras. Deveria, nesta sociedade de consumo e da guerra de marcas, nas quais as marcas valem muito mais do que as fábricas e os produtos, ser vista como competência, como uma marca forte. Atrás da marca Quilombo, tem vários marketings possíveis. Ela é o principal referencial da nossa dignidade histórica.
Agora individual, munidos de gravata, diploma, curso de inglês e informática, não são as suas sacrificadas competências individuais que vão te fazer driblar os racismos. Muito menos os pequenos sucessos, os modismos dos negros de alma branca, dos negros bem sucedidos ou outras historietas de faz de conta. A realidade é que as competências são coletivas. São famílias e grupos, partido e seitas, grupos informais e formais. Sempre alguém é alguém porque tem a sua turma. E qual é a sua?
As mãos continuam sujas e nem mesmo nos perguntamos por quê?
Mas se perguntam sem medo nenhum da verdade terão que os senhores durante o escravismo criminoso, se especializaram em beber sangue humano, ao matarem a espécie devido o prolongado hábito, tornaram-se vampiros. Por isso, das mãos continuam escorrendo sangue, mesmo que o grosso do serviço seja feito na fábrica automática e limpa.
Terminava aí, se não fosse o episódio tragicômico da manhã de ontem. Acontece que eu tive um fatídico encontro com um vampiro branco. Disse-me ele para minha ciência do fim trágico:
– Bem que avisamos, mas vocês são teimosos em demasia. Têm que ficar pensando, questionando e falando… falando. A regra básica é nossa. Nesta democracia racial apenas os brancos falam. Vocês apenas escutam e fazem aquilo que escutam. Aí para quem vacila, a regra é a morte.
Somente aí, em meio a suposta tragédia da morte, em segundos é que foi possível um sorriso. Ria da minha ingenuidade. Até então não tinha percebido, como dizia minha sábia avó, nas suas ancestrais sabedorias, vivendo, aprendendo e morrendo sem saber. Estava ali o sangue, as mãos ensangüentadas para marcar o terror, não apenas a satisfação dele, mas a forma de terror que aterroriza. Tinham necessidade de sangue, para aparecerem no mundo das crianças nossas. Assim, inconscientemente, para o resto das suas vidas teriam, essas crianças, medo dos fantasmas brancos.
Também entendi porque outros brancos quase nunca acreditam nas histórias dos racismos. Histórias que para eles não passam de pesadelos nossos. Na mesma ótica, outros negros têm medo de admitir que conhecem o racismo, pois assim teriam que acreditar em quase coisa de assombração.

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