“As tecnologias de informação se transformaram de tal maneira que às vezes tenho a impressão de que estamos passando por uma revolução equivalente à invenção da escrita. Temos hoje um processo muito diferente de ‘consciência si’ e da socialização, graças à maneira pela qual essa informação está sendo formatada, divulgada e aceita. Em particular, isso transforma a imagem, que agora se confunde com o discurso, de maneira antes inimaginável. Basta ver o que era a montagem de um filme de 1930 e o que é hoje a montagem – essa sintaxe rapidíssima do filme de ação, em que eu me perco, mas a meninada capta inteiramente. Por outro lado, é possível fazer o contrário: distender o tempo de forma que os espaços e os silêncios tenham novos significados, como fez ( o cineasta italiano Michelangelo) Antonioni. Isso tudo afeta diretamente a produção artística. De um lado, temos pintores produzindo imagens mais grudentas, mais densas; de outro, imagens que são apenas fios.
Existe uma linda frase de Hegel que fala na ‘paciência do conceito’, isto é, para que a gente possa compreender as coisas é preciso ter consciência. Ninguém aprende de imediato. Matemáticos ficam imaginando o espaço de várias maneiras – e os teoremas vão saindo justamente a partir dessa imaginação, através dessa exploração, como se fosse um mundo virtual. Só que agora está diferente: a informação está à disposição de todos. O tempo deixou de ter aquela dimensão de memória. Graças à internet e a outras técnicas de informação, a História virou tempo real. Evidentemente, há deformações muito grandes – a rapidez faz com que as pessoas possam utilizar informações históricas sem que realmente saibam o que está acontecendo. Essa informação que pega os conceitos pela aresta permite uma mistura entre verdade e mentira que nem Nietzsche poderia imaginar que chegasse a tal ponto. Aliás, a nossa campanha política hoje é extraordinária. Se daqui a uns anos sociólogos e historiadores começarem a peneirar o que os candidatos estão dizendo de verdade, tenho a impressão de que vai sobrar três ou quatro grãos de arroz.
Estamos nos relacionando com a ciência de uma maneira muito especial. O conhecimento que se tem é muito amplo, mas não é conceitual. Penetrar na teoria da relatividade, por exemplo, implica uma tecnologia matemática que dificilmente nós temos – o que temos é um panorama de quase conceitos que, de certo modo, barra uma espécie de ‘consciência de si’, reflexiva. Não creio que se possam produzir hoje romances do porte dos deTolstoi, Dostoievski ou mesmo Balzac, que revelou a sensação da comédia humana. Não é à toa que, em vez de folhetins, como na obra Balzac, hoje temos auto-ajuda. A quantidade de livros dessa natureza – não só de auto-ajuda, mas de filosofia e antropologia auto-ajudante – faz com que entremos numa fase cultural que ao mesmo tempo socializa e dessocializa, com oposição e tensão muito grandes.
Concordo plenamente com quem vê cultura e educação como faces de um mesmo problema. Estamos vendo que a vida cotidiana, a internet e o telefone ensinam muito mais códigos do que os códigos que as crianças aprendem na escola fundamental. Com um problema que é a perda da discursividade. Basta ver o que é um texto de um torpedo entre um garoto e outro: o problema da conexão do discurso e, portanto, da modalização do pensamento desaparecem. A crise estoura no ensino médio, quando a escola começa a grudar em certas informações que antigamente eram importantes para se ter uma certa concepção da História – saber o que foi a queda da Bastilha, o Parthenon etc. Hoje, você vai ao Google, digita ‘Parthenon’ e entrega a lição. Ao contrário do que está fazendo o governo – enfiar matéria, matéria, matéria –, temos de encontrar ‘linhas de formação’, mais ou menos como está sendo feito com relação à formação dos cientistas. Um matemático não é um matemático que sabe muita matemática. O bom matemático é aquele que sabe muito bem um pedacinho da teoria, e que, à medida que tem necessidade, vai ampliando esse conhecimento. Tomo de propósito o tema da matemática porque sabemos que grandes matemáticos e físicos trabalham até os 30 anos de idade. Quando Einstein publicou com 21 anos o primeiro texto sobre a relatividade, ele sabia pouquíssima matemática e pouquíssima física. Sabia três ou quatro coisas, mas sabia como nunca se soube antes. Colocou-se dois ou três problemas e foi adiante. De certo modo, teremos de retroceder a esse tipo de educação.
Para que isso passe a funcionar, não só temos de modificar a legislação e a relação do Estado com a cultura, como temos também de reciclar os professores. Não adianta nada imaginarmos o Fundep (Fundo de Desenvolvimento da Pesquisa) e outras tantas coisas importantes em educação, sem que o professor do ensino fundamental realmente seja alfabetizado. Qual é o futuro disso eu não sei. Talvez a gente possa ficar animado com essa coisa extraordinária que é a ‘presentificação’ da História – e, de certo modo, a ‘presentificação’ do futuro.”