Ser mãe na Colônia: a condição da mulher sob o aspecto da maternidade irregular (séc. XVII e XVIII)
I- O panorama da Mulher na condição de esposa e mãe.
Pensar o papel da mulher no período colonial, sua sensibilidade e vivência, remete-nos a uma visão intrinsecamente vinculada ao aspecto familiar e doméstico.
Assim, pensar a história da maternidade na colônia significa examinar a condição feminina no que se refere as suas funções nas relações familiares e conjugais, mas também perguntar de que maneira tais maternidades eram vivenciadas: de forma lícita e sacramentada, seguindo as orientações da Igreja e do Estado, como fruto da união matrimonial ou de formas consideradas ilícitas (fruto da sedução, do estupro ou de cópulas pré-conjugais, seguidas do abandono do noivo, por exemplo).
A Igreja, instituição mentora no projeto da difusão da importância do matrimônio, foi que, a serviço do Estado, impôs as normas de conduta que estabeleciam a divisão de incumbências no casamento, dentro do sistema patriarcal desenvolvido na colônia portuguesa na América.
Dessa forma, sob a organização do Antigo Sistema Colonial, a vida feminina estava restrita “ao bom desempenho do governo doméstico e na assistência moral à família, fortalecendo seus laços”(SAMARA, 1983. P.59). O homem, por sua vez, tinha seu papel centrado na provisão da mulher e dos filhos, concentrando o poder de decisão na família. Os encargos do matrimônio, no que se refere à manutenção do casal e proteção dos bens, cabiam, portanto ao homem. A essa proteção cabia à mulher responder com obediência.
Existiam no entanto enormes discrepâncias no que diz respeito à realidade feminina quando se comparam diferentes classes sociais no Brasil, tanto no que diz respeito às funções domésticas e administrativas, quanto à maternidade. Diferentemente das mulheres de elite, na maioria das vezes correspondentes ao estereótipo de mulher submissa e mãe dedicada( seguindo as normas de conduta difundidas pela Igreja e pela legalização do Estado), descrito anteriormente, as mulheres mais pobres, pertencentes às camadas populares, por outro lado, não correspondiam em sua grande maioria, ao tipo de família que estudos e pesquisas encontram como tipologia. “A realidade colonial era a de lares pequenos e famílias com estruturas simplificadas”(DEL PRIORE, 1989. P. 46), sendo muito comum a existência de mães solteiras, que foram vítimas de exploração sexual e doméstica, traduzindo-se em humilhações, abandono e violência por parte do homem progenitor da criança. Assim, caracterizadas “como auto-sacrificadas, submissas sexualmente e materialmente reclusas, a imagem da mulher de elite se opõe à promiscuidade e à lascívia da mulher de classe subalterna, em regra mulata ou índia”(DEL PRIORE,1993. P. 46).
II- Maridos ausentes, mães solteiras e relações concubinárias.
Contrariando as normas estabelecidas pela Igreja, defensora primeira do matrimônio, grande parte das mulheres pobres estava inserida num cenário familiar caracterizado pela ausência dos maridos, companheiros instáveis, mulheres chefiando seus lares e crianças circulando em outras casas e sendo criadas por comadres, vizinhas e familiares. Muitas mulheres viviam também do relacionamento concubinário.
A Igreja, por sua vez, apresentando o matrimônio como sinônimo de segurança e proteção, não cessava de tentar aproximar da sua pregação as mulheres que viviam fora dos padrões sociais estabelecidos. “Ao transferir para a Colônia uma legislação civil e religiosa que só reconhecia o estatuto social da mulher casada e mãe, a Igreja apertava o cerco em torno das formas não sacramentadas de convívio”(DEL PRIORE, 1993. P. 50).
Entre as classes subalternas, as formas não sacramentadas de convívio conjugal não eram absolutamente um empecilho para que as mulheres continuassem tendo filhos e tentassem criá-los.
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Cabe então nesse momento, fazer a seguinte pergunta: até onde vai a passividade e a submissão feminina? As imagens da realidade, como se vê, são contraditórias e os estereótipos irreais.
Na verdade, a mobilidade geográfica dos maridos ou companheiros nos tempos de povoamento e instalação do sistema colonial( Séculos XVI, XVII e início do XVIII), deu ao concubinato uma enorme semelhança com o casamento, já que, na maior parte deles, os homens se encontravam distantes da família(pode-se apontar como principais fatores para a ausência dos homens as entradas no sertão e as viagens para as minas). Essas ausências acabaram por acarretar conseqüências: as mulheres passaram a se ver como chefes de suas casas e de suas famílias, já que foram obrigadas a lutar sozinhas por sua sobrevivência e pela sobrevivência dos filhos.
As ausências dos maridos transformavam-se muitas vezes em abandono do lar. Essas colocações sugerem novas imagens da mulher na família e na sociedade, com uma participação mais ativa , embora seu papel fosse limitado, frente à manutenção dos privilégios masculinos na estrutura social.
A luta pela sobrevivência familiar determinou uma maior ligação entre mães e filhos no que diz respeito ao trabalho, com a divisão das tarefas cotidianas necessárias para a obtenção dos víveres.
Uma ocorrência comum, em meio as relações concubinárias, era a incorporação pela família de filhos ilegítimos, que conviviam com os filhos legítimos, de baixo do mesmo teto, apesar da contrariedade da Igreja a esse costume, seus praticantes pareciam ter sua consciência pouco afetada. A Igreja defendia que(DEL PRIORE, 1993. P. 50) ao aceitar ocuparem-se com esses frutos de outros ventres, as mães terminavam por aceitar outras formas de convívio sexual que a Igreja não admitia.
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A história da maternidade resultante da sedução de mulheres sós, de estupros e de relações sexuais pré-matrimoniais seguidas seguidas de fuga de noivo, sendo essas mulheres transformassem mães solteiras, é um ponto importante para a compreensão da condição da mulher no campo materno. As frustrações, a humilhação advinda do abandono do companheiro, as angustias da gestação terminavam por constituir uma boa oportunidade para que a Igreja pudesse vender a idéia das vantagens do casamento. E muitas dessas mulheres correspondiam ao desejo do matrimônio, pois este era considerado como sinônimo de sonhada segurança e estabilidade econômica e moral: “Uma vez efetuados os passos da conduta amorosa, as mães solteiras invocavam, na medida de suas conveniências, valores como ‘ virgindade roubada’ ou ‘quebra de promessas de esponsais’ para passar de um degrau ao outro: da sedução ao casamento. A Igreja então, recompensava as ‘arrependidas’ com processos eficientes e rápidos que garantiam o seu objetivo institucional: difundir o casamento, dentro do qual se poderia ‘educar cristãmente os filhos’ “.( DEL PRIORE, 1993. P. 70)
Explicita-se assim, a forma pela qual muitas mulheres esperavam criar seus filhos com a segurança mínima que só o casamento poderia garantir.
III – Maternidade negada: a opção de muitas mães pelo abandono, aborto ou infanticídio.
As conseqüências realmente graves da maternidade irregular eram de ordem sócio-econômica e não moral. A pobreza e dificuldades da vida material uniam de mulheres brancas pobres a escravas, confirmando a necessidade feminina de estabilidade e proteção. Para muitas mães solteiras, sem família nem companheiro, o filho passava a significar ‘mais uma boca para alimentar’. Tal cenário de extrema pobreza e luta pela vida é um dos motivos que obrigava muitas mães a destinar seus filhos ao abandono ou ao infanticídio, esses dois em maior número que o aborto.
Os diferentes ritmos de crescimento do mundo colonial repercutiam fortemente na condição de vida das crianças. Enquanto no campo, onde as transformações eram lentas, o abandono raramente ocorria e os enjeitados acabavam sendo adotados como ‘filhos de criação’; na cidade, espaço de aceleradas transformações e desequilíbrios, não havia lugar para acolher os pobres e dar assistência ao enorme número de crianças enjeitadas.
“No século XVIII, houve um crescimento da população livre e pobre e junto com ele o abandono de crianças, ao desamparo pelas ruas e lugares imundos, segundo os Anais do Rio de Janeiro de 1840.” (DEL PRIORE, 1989. P. 48)
Nas cidades, coube às câmaras e às Santas Casas o trabalho de acolhimento e criação de enjeitados. Nas Santas Casas instalava-se a Roda dos Expostos, onde os bebês eram deixados.
Cabe-nos agora explorar mais de perto o comportamento feminino em relação ao abandono dos filhos, fazendo algumas perguntas; quais motivos levariam mães a abandonarem seus filhos? De que forma é possível conhecer um pouco de sensibilidade materna nos séculos passados através da história do abandono de crianças? Qual é o significado do abandono e o que está por trás dessa atitude?
Uma interpretação bastante comum consiste em atribuir o abandono a motivos morais. Entre a população branca, o comportamento feminino dentro dos padrões morais estabelecidos era permanentemente fiscalizado pela Igreja e pela comunidade. Assim, “um filho ilegítimo(de mulheres negras e mestiças) não desonrava a mãe no mesmo grau de uma mulher branca.”( DEL PRIORE, 1989. P. 198.) dessa forma, a Roda dos Expostos procurava evitar os crimes morais, protegendo as mulheres brancas e solteiras dos escândalos, ao mesmo tempo que oferecia alternativa à crueldade do infanticídio.
Portanto, é de se supor que muitos enjeitados no Brasil colonial fossem resultado das relações ilícitas de mulheres de condição social elevada, para as quais era fundamental a manutenção da honra. No entanto, é necessário lembrar que a mãe solteira ou concumbina acabou sendo aceita nas cidades e vilas do século XVIII. Assim sendo, “o modelo patriarcal que contrapõe o recato da mulher branca à promiscuidade das escravas é uma grosseira simplificação da realidade”.( DEL PRIORE, 1989. P. 199)
Uma Segunda interpretação à prática do abandono, talvez a de maior ocorrência de todas, consiste no abandono como resultado da miséria e indigência das mães.
A escravidão e a miséria deixaram como herança séculos de instabilidade doméstica, o que levou as mães das camadas populares a improvisarem até mesmo as formas de amor e de criação dos filhos: uma prática comum entre as mães pobres consistia na distribuição de seus filhos entre parentes, amigas ou comadres para os criarem
Do ponto de vista oficial, mães que enviam filhos a outra família pareciam insensíveis e egoístas. No dia-a-dia, porém, a realidade era outra e não se via no abandono uma prova de falta de amor, mas sim era tido como um verdadeiro gesto de proteção e ternura, frente às enormes dificuldades materiais da mãe, que de forma alguma poderia garantir um futuro promissor aos filhos.
Portanto, o abandono está ai justificado como uma forma paradoxal de manifestação de amor maternal.
Casos de abandono menos freqüentes eram aqueles resultantes da morte dos pais, relacionados à insalubridade do meio urbano, maior densidade populacional, presença de muitos pobres mal alimentados e de estrangeiros portadores de doenças, acarretando altas taxas de mortalidade.
Detalhe de janela na Igreja e Convento
de Santa Teresa, no Rio de Janeiro,
com grade e pontas de lança para
proteger a “integridade” das internas
Uma Quarta interpretação seria a chance de o enjeitamento funcionar como forma de controle de natalidade. Assim, o abandono seria uma solução para se manter o número ideal de filhos.
No que diz respeito à legislação referente ao abandono, é importante lembrar que enjeitar o filho não constituía crime, nem implicava a perda da posse: as mães, caso quisessem, poderiam recuperar o filho deixado na Roda ou entregue a outra família. O mesmo não se pode afirmar quando o assunto é infanticídio e aborto, considerados criminosos, eram tidos também como práticas heréticas e demoníacas.
Proponhamo-nos agora uma pergunta: a existência de numerosas instituições destinadas a enjeitados não revelaria, de certa forma, um certo descaso de autoridades metropolitanas em relação ao abandono? Poderíamos dar resposta afirmativa à pergunta, uma vez que a tal posição pode ser acrescentada a permanente falta de recursos adequados à criação das crianças nas casas de misericórdia, além da absolência das câmaras encarregadas do encaminhamento dos enjeitados.
Os índices de mortalidade dos enjeitados eram assustadores e muitos médicos consideravam as condições das Santas Casas e o descaso das criadeiras como verdadeiros motivos da morte em massa das crianças.
A negação da maternidade implicava na multiplicação de criadeiras gananciosas que empregavam desastrosas técnicas de amamentação artificial, levando milhares de bebês à morte. Também não eram raros os casos em que as criadeiras obrigavam as crianças à prestação de serviços: afazeres domésticos, tratamento de animais de pequeno porte, trabalho na roça.
IV- Conclusão
A análise da condição maternal da mulher no Brasil colonial, principalmente da mulher das camadas populares, inserida num cenário de extrema pobreza e luta pela vida, situação que se torna ainda mais crônica se a ela se soma a ausência de maridos e companheiros, deve desmistificar a relação da maternidade irregular e da ilegitimidade com a falsa idéia de promiscuidade atribuída à massa de marginalizados do mundo colonial.
A grande maioria das mulheres na colônia, á mercê da opressão de um sistema social de submissão e nula ajuda institucional, via a maternidade inevitavelmente, como uma sobrecarga. “No Brasil, ao dizer ‘ família’ vale ler ‘ mães sós’ que compunham a grande maioria, sobretudo nas classes subalternas”( DEL PRIORE, 1989. P. 55). A opção para tais mulheres era o abandono, o aborto ou o infanticídio.
Renata Pedroso Araújo
BIBLIOGRAFIA
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil: raízes históricas do machismo brasileiro, a mulher no imaginário social, “lugar de mulher é na história”. São Paulo: Contexto, 1989.
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro: José Olympo, 1993.
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
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