O sedutor precisa dominar, por saber-se frágil demais para compartilhar, enquanto o seduzido recusa o princípio de realidade, em favor de uma aposta no devaneio
Nada mais oportuno quanto necessário do que, na abertura do tema proposto, se recuperar a etimologia da palavra “sedução”. Com o intuito de não se incorrer em mera repetição do que, em outra época, a respeito já escrevemos, melhor será a transcrição direta da fonte: A palavra provém do Latim seducere (se[d] + ducere). Sed, além de conjunção equivalente a “mas”, atuava nos textos antigos como prevérbio, significando “separação”, “afastamento”, “privação”, e ducere queria dizer “levar”, “guiar”, “atrair”. Em síntese, portanto, “seduzir” era o processo pelo qual se atraía para privar o outro da autonomia de si, sob a promessa de possibilitar-lhe a experiência do prazer pleno.
As marcas semânticas presentes na formação da palavra convergem para sentidos dúbios ou imprecisos, a ponto de se prestarem tanto a processos edificantes quanto a práticas eticamente condenáveis. Em qualquer das opções, porém, a sedução implica uma estratégia comandada pela linguagem. Do mesmo modo que é a aquisição da linguagem o ato de fundação civilizatória, assim o é a origem da sedução. Linguagem e sedução formam, talvez, a primeira parceria na história da aventura humana. Em outros termos, a sedução tem a idade da linguagem. Não é por outra razão que, na narrativa mítica das origens, lá está, como parábola, a “alegoria da perdição”: a serpente, a tentação e o fruto proibido.
Lendo os símbolos dessa narrativa, não é difícil deduzir-se que a inspiração divina escolhe a “sedução” como instrumento de seus obscuros desígnios com os quais põe à prova Adão e Eva. A narrativa bíblica – aqui desvinculada de suas implicações religiosas e apenas mencionada como registro de uma escrita – é pródiga em oferecer outros tantos exemplos que remeteriam ao episódio de Sansão e Dalila, a dança de Salomé, as passagens de Sodoma e Gomorra, entre outras. Todas, em comum, remetem à idéia primeira: uma linguagem se articula para traduzir o enredamento de uma trama na qual reina a “sedução”, cujo propósito consiste na obtenção de algo da ordem do segredo ou do proibido. Em sendo compreendido o exposto, torna-se inevitável a compreensão seguinte: no fundamento que enlaça a linguagem e a sedução encontra-se a questão mais profunda – a verdade. Tanto seduzimos para obtê-la, quanto seduzimos para ocultá-la.
A dominação – A cultura latina não esconde, em suas derivadas línguas, relações entre “atrair” e o “trair”, principalmente a Língua Portuguesa. Nesta, há claro processo de derivação entre elas, o que muito colabora para elucidar tantas passagens de nossa história, seja da mais remota, seja da mais recente. O sentido de “atrair” está impregnado de uma estratégia direcionada para a falsificação, a simulação. Promovendo um corte para as raízes da brasilidade, nelas identifica-se, como discurso de fundação, o signo da sedução: o encontro entre o colonizador e os habitantes indígenas. Mesclada aos tiros de canhões que provinham da esquadra, seguiu-se a exposição de quinquilharias com que o colonizador objetivava a invasão e a apropriação. José de Alencar, nos dois primeiros capítulos de Iracema, oferece ao leitor a metaforização do significado histórico do que representou a chegada dos portugueses e seus desdobramentos.
Como na narrativa bíblica, a história brasileira é contada com base num artifício de linguagem que, apoiado na sedução, faz vingar a “lógica perversa da tentação” da qual deriva o infortúnio. No enredo da sedução, há invariavelmente a construção de um “jogo” em que o sigilo das verdadeiras intenções se faz determinante para a obtenção do pretendido. Seguindo o atalho dessa conceituação, não se torna difícil deduzir que, em sociedades cuja prática do poder está envolta em redes com maior grau de opacidade, se verifique maior intensidade da “sedução” como modo de condução do próprio poder, em oposição a sociedades nas quais é maior a taxa de transparência. Em certo sentido, portanto, a vigência de maior ou menor presença de signos da sedução numa dada cultura revela seu estágio de infantilização ou amadurecimento. Tal diagnóstico se mostra bastante rentável, ao procurarem-se que signos são esses. Para tanto, cabe uma primeira indagação: O que associa a sedução à infantilização? A resposta pode ter elucidação inicial, a partir de uma definição de Jean Baudrillard: “Seduzir é morrer como realidade e produzir-se como engano”.
O que Baudrillard resume de um modo tão pleno é o fato de cirurgicamente ir ao ponto central da questão. Quem seduz sabe que precisa negar a realidade das coisas para, por intermédio da ilusão, atingir o objetivo. Na outra ponta, está o seduzido para quem a realidade só é percebida pelo olhar turvo da ilusão. No discurso da sedução, vigora, pois, o duelo entre dois imaginários infantis. Ambos recusam o “princípio de realidade”, conforme Freud conceitua. A compreensão dessas implicações abre uma cena à parte.
A infantilização – Todas as questões convergem para a tensão entre “sedução” e “infantilização”. À estratégia da sedução, estão presas as forças sistêmicas; ao processo de infantilização, estão subordinadas camadas da população que, no entender de Hegel, representam a “consciência ingênua”. Em sociedades cujas estruturas dominantes precisam investir no mascaramento de suas práticas, é natural que elas recorram a expedientes requintados no propósito de ocultar. O fingimento passa a constituir-se no principal instrumento de sustentação, aliando-se ao controle sobre as fontes do conhecimento, sem que, para tanto, precisem da utilização da censura. No regime da sedução, não há lugar para o veto ou proibição. Pelo contrário, no jogo da sedução, há de vingar a idéia de que tudo é da ordem do permitido, visto que um dos atributos do sedutor depende da capacidade de convencer pela promessa de uma aventura libertária e prazerosa. É nesse contexto que podemos vislumbrar como pares se associam: liberdade – alegria; publicidade – sonho; ilusão – sucesso; riqueza – bênção; futuro – redenção. Em síntese, um modelo cultural que recusa a maturidade reflexiva, o “princípio de realidade”, deve confundir-se com o “princípio de prazer”, ou seja, há deliberado propósito em neutralizar-se a diferença fixada por Freud.
A aventura amorosa – Outra face da sedução tem larga tradição na cultura literária. Algumas referências se tornaram mais célebres, porque também mais conhecidas e citadas. Don Juan (Idade Média, na Espanha), Giacomo Casanova de Seinglat (vertente italiana: 1725 – 1798). Na tradição francesa, as personagens Valmont e a marquesa Merteuil, em Ligações Perigosas, Choderlos de Laclos (séc. 18), a desventura do jovem Werther, na criação narrativa alemã de Goethe, em fins do século 18, compõem a galeria. Nada, porém, se iguala à dimensão que o tema adquiriu, quando nos deparamos com a quase inesgotável produção romanesca a perpassar o século 19. Flaubert, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, José de Alencar e Machado de Assis, entre outros, legaram obras que demandariam reflexões e análises específicas que obviamente escapam à objetividade e resumida extensão deste escrito.
Igualmente, em diferente instância, nos campos político e religioso, abre-se amplo leque de possibilidades de leituras acerca dos procedimentos com os quais líderes locais ou mundiais promoveram diversificados “jogos de sedução”. Por mais estranho que pareça, desobstruídas as barreiras da crença, bem podem aproximar-se Jesus Cristo e Hitler, como agenciadores de massas, o mesmo estendendo-se a Mussolini, Maomé, Fidel Castro, Perón e Evita.
O que de mais profundo busca o sedutor na construção da cena amorosa? Que aspectos estratégicos estão em jogo? De início, cabe relatar que não foi ocasional a escolha da palavra “aventura”, em lugar, por exemplo, de “relação”. Cabe, pois, maior explicação quanto ao critério de nomeação. Semanticamente, algo separa uma da outra. Enquanto “aventura” pressupõe curta duração, “relação” sugere o oposto. Assim, já se deseja antecipar que, na cena amorosa, o processo de sedução exige um tempo ajustado – nem mais nem menos – para a obtenção do desejado. E o que define por completo a fronteira é o propósito ético a envolver o pacto. Na sedução, o prazer reside na capacidade de “A” dobrar a resistência de “B”. Na relação, “A” quer compartilhar de “B” e vice-versa.
Todos os movimentos da sedução devem ser tramados pelo sedutor. É ele quem espacializa, mesmo quando finge submissão. O fingimento das reais intenções norteia os gestos e os sentimentos do sedutor, armando a teia na qual sediará a presa. “A” sedia e “B” cede. Ambos parecem emoldurados pelo prazer, sem a percepção das diferenças entre as quais se situam a perversão de “A” e a morbidez de “B”. Na sedução amorosa, portanto, a morte (real ou simbólica) é inevitável. Ao infindo prazer, haverá de corresponder infinito sofrimento. Não é por outra razão que a vivência no regime da paixão é perigosa. Sob o fluxo intenso da paixão, turva-se a noção de distância, tão necessária para o ajuste do foco, da visão. Nem muito longe que o olhar não alcance; nem muito perto que o olhar embaralhe. Como saber a justa medida? Sim, a paixão não a reconhece. Como também é impossível que “A” e “B” saibam da igualdade com que vivem a intensidade dos sentimentos. É justo nesse ponto que se abre a perspectiva da sedução. Ambos temem, desconfiam. Mentem para si mesmos que só o que importa é o “outro”, quando, na verdade, é apenas o EU que clama pela posse definitiva.
Tudo, pois, se torna aflitivo, ilimitado e devastador. Instalado o quadro, não há o que negociar. A generosidade da negociação é ultrapassada pela impetuosidade da sonegação (só negação). “A” passa a esconder de “B” e o enigma cresce, razão pela qual na paixão o que vinga não é o poder da razão, mas a razão do poder na sua desmedida volúpia e voraz dominação. Nesse sentido, dosar a vivência da paixão é perpetuar o processo civilizatório. De igual modo, intensificar o regime de sedução na sociedade de consumo significa potencializar o fascínio pelos “objetos”. Numa ponta, situa-se o sedutor (o detentor do capital); na outra, o ser fragilizado pela dominação que investe e canaliza sua reatividade na aquisição do que move seu fascínio. Como mediadora dessa aventura, apresentam-se a publicidade e o marketing. Por que a sociedade de mercado tende a ser mais violenta que a sociedade de consumo? Porque os instrumentos com os quais a sociedade de mercado implementa sua lógica não dizem mais respeito a estratégias de sedução. Nessa altura, a etapa foi ultrapassada pelo “fluxo da compulsão”. Não há mais “jogo”. Somente o frio resultado: entronização do vencedor e eliminação do vencido.
A reflexão proposta aparentemente saiu, de modo brusco, do enfoque da “aventura amorosa” para migrar para processos sistêmicos. Todavia, o roteiro está absolutamente coerente com o propósito delineado. Deseja-se exatamente demonstrar que as práticas a regerem sentimentalmente duas vidas estão perfeitamente sintonizadas com a lógica do processo civilizatório em curso. Assim, quando se pensa criticamente o discurso da sedução na esfera subjetiva, tem-se a possibilidade de ampliar a percepção para a “macrovida”. Na maioria das vezes, constata-se o equívoco promovido pelos recortes da sociologia e da psicologia, justamente em função da parcialidade de seus focos, a despeito de sofisticado aparelhamento teórico. Um privilegia a compreensão do que é sistêmico para explicar a conduta individual. Outro seleciona o sintoma do indivíduo para ajustá-lo ao modelo dominante. São dois olhares fraturados que deslizam sobre realidades incompletas. O real desafio consiste no permanente estado de abertura do pensamento, a fim de melhor apreender e compreender acontecimentos sinuosos e, por vezes, assimétricos com os quais se molda a vida na simbiose de uma construção em mosaico, combinada com o movimento da espiral.
Conclusão em máximas – O sedutor sempre quer o poder. Envolve o outro para dominá-lo. O sedutor precisa dominar, por saber-se frágil demais para compartilhar. O seduzido recusa o princípio de realidade, em favor de uma aposta no devaneio. Entre sedutor e seduzido, há sempre o encontro de seres inautênticos. A fragilidade e o masoquismo alimentam o jogo da sedução. Somente seres falsificados se entregam à sedução. O sedutor é um tirano acovardado. O tirano é um sedutor frustrado. Em ambos os casos, o poder exercido é sempre inautêntico. Ao sedutor, resta o gozo incompleto; ao seduzido, o gozo da entrega. Embora possa parecer o contrário, a atmosfera da sedução é a negação do erotismo. Ambos os parceiros estão fora da cena real. O sedutor, porque está preocupado com a condução da trama; o seduzido, porque se encontra invadido pela ilusão. Uma sociedade, sob a liderança da sedução, tende à infantilização. A experiência democrática no Brasil é marcada por esse aspecto. O sedutor é um traidor de si mesmo. O seduzido é um ser que, ao deixar-se atrair, trai sua liberdade e sua autonomia. O sentimento masoquista é o impulso que move sedutor e seduzido. Ambos se tornam reféns da perversão e da morbidez.
Ivo Lucchesi é ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e articulista do Observatório da Imprensa (on line).