Protagonista

 

 

 

 

 

O que contribui mais ao desenvolvimento da humanidade: a proteção cada vez maior das invenções e obras para incentivar a corrida pela inovação tecnológica ou a flexibilização para possibilitar soluções criativas a partir do acesso ao conhecimento? É exatamente na tensão e na busca de equilíbrio entre essas duas vertentes que se encontra a disputa pelas regras internacionais orientadoras das políticas de gestão do conhecimento e fluxo de informações e dados.

 

Em meio a este choque de visões, o Brasil – assim como no caso das discussões relativas ao tema em outras organizações multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) – vem assumindo papel protagonista nos debates da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). O País lidera, ao lado da Argentina, um grupo de nações auto-intitulado “Amigos do Desenvolvimento”, que buscam avançar com uma proposta própria de diretrizes, denominada “Agenda para o Desenvolvimento”, na próxima assembléia da OMPI, que será realizada no final deste mês. Na proposta, o conjunto de países avaliam que a propriedade intelectual não pode mais ser vista como algo rígido, que deva ser protegido independente dos resultados que provoque, especialmente considerando que estes efeitos são diversos e dependem diretamente das condições sociais e econômicas de cada nação.

 

Se adotada como instrumento para o desenvolvimento dos países, a propriedade intelectual deve servir a este fim e não condicioná-lo, mesmo que isso signifique uma análise mais criteriosa e até mesmo a flexibilização na proteção de obras e invenções. “A propriedade intelectual pode gerar custos e benefícios. Por isso, é necessário tomar medidas em todos os países para garantir que os custos não superem os benefícios”, propõe a Agenda do Desenvolvimento. E quais seriam esses custos? Na avaliação das nações que assinam o documento, o primeiro seria a expansão dos direitos de propriedade intelectual (DPI) sem uma análise que a justifique com base nos benefícios para todos os países membros da OMPI, e não apenas os mais ricos. Este processo, salientam, gerou fatos como o aumento desordenado de patentes que contribuiram exatamente para o efeito indesejável da concentração tanto nos países mais ricos quanto nos seus grupos econômicos.

 

Segundo estatísticas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), apenas 1% das patentes são de países em desenvolvimento. Outros dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido) revelam como este processo se deu no caso do Brasil. Entre 1994 e 2003, quando o País promoveu uma reforma na legislação referente à propriedade intelectual, os investimentos nas áreas de biotecnologia e farmacêutica caíram, respectivamente, de US$ 28 e US$ 91 milhões para US$ 15 e US$ 37 milhões.

 

Esse processo de crescente transferência de recursos de países ditos em desenvolvimento para os países mais ricos tem um marco: a assinatura do Tratado sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em inglês). “O aumento da proteção aos DPI em países em desenvolvimento, intensificada com o Trips, parece ter gerado concentração da atividade inovadora em poucos países desenvolvidos – e por conseguinte, a desnacionalização da produção em países em desenvolvimento”, afirmou Otávio Brandelli, chefe da Divisão de Propriedade Intelectual do Ministério das Relações Exteriores (MRE), durante palestra no encontro nacional de propriedade intelectual realizado no final de agosto em Brasília.

 

Na conjuntura da criação da OMC, em 1994, com o fim da rodada do Uruguai e do Gatt (Acordo Geral para Tarifas e Comércio) e com o ascenso do neoliberalismo do mundo, os países ricos construíram as bases do desenvolvimento tecnológico mundial. Enquanto em todas as outras áreas, sobretudo nos serviços públicos dos países ditos em desenvolvimento, a ordem era liberalizar, no campo da propriedade intelectual, o Trips veio para estabelecer restrições obrigatórias nunca antes vistas para os membros da recém-criada OMC. “Na verdade, o Trips congelou o sistema internacional de conhecimento científico e tecnológico: quem tem, vai continuar produzindo, e quem não tem, não vai produzir, por que não tem como começar. Assim, quanto mais privilégios forem dados para o monopólio do invento inicial, menor será a possibilidade de outros participarem do comércio internacional de novos produtos e processos”, explica Cícero Gontijo, especialista no tema, em caderno sobre o Trips publicado pelo Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

 

Com a chegada do século XXI e o crescente desenvolvimento tecnológico, a gestão desse bem imaterial passou a ganhar importância ainda maior. “A propriedade intelectual regula o principal ativo econômico do século XXI, abrangendo a produção do conhecimento, inovação tecnológica e pesquisa científica”, diz o professor da Faculdade de Direitos da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), Ronaldo Lemos. No rol dos beneficiários deste sistema estão os megagrupos das áreas farmacêutica, eletroeletrônica, de software e produção audiovisual. Segundo dados do Centro de Biotecnologia Molecular Especial da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), o mercado mundial farmacêutico movimenta cifra superior a US$ 200 bilhões por ano. De acordo com o Instituto do Audiovisual e das Telecomunicações na Europa, a indústria do audiovisual faturou ainda mais, cerca de € 255 bilhões apenas nos países desenvolvidos.

 

Mas ao mesmo tempo em que os lucros das grandes companhias do mundo cresceram num ritmo acelerado, o desenvolvimento da tecnologia trouxe possibilidades cada vez maiores de reprodução de obras e inventos. Um dos exemplos mais claros é a cópia de CDs e DVDs a custo de menos de 10% do valor vendido nas lojas, bem como a troca de arquivos sonoros e audiovisuais na internet de forma gratuita. Preocupados com este novo cenário, os países mais ricos, sobretudo os EUA, passaram a buscar aprofundar as proteções contidas no Trips tanto em acordos bilaterais quanto no âmbito da OMPI.

 

Em acordos comerciais com uma nação ou um grupo delas, estes países passaram a incluir cláusulas mais restritivas, apelidadas de “Trips +”. Gabriela Chaves, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip), explica que estas novas normas visam acabar com as flexibilidades que o Trips ainda possibilita. Como é o caso da limitação da possibilidade dos governos concederem autorização para que terceiros explorarem a patente mesmo que detentor não tenha autorizado, a chamada licença compulsória, a ampliação das dificuldades para que um Estado flexibilize o monopólio sobre áreas ou produtos sob alegação de interesse público e o aumento do tempo de monopólio de patentes. Exemplo é o acordo de livre comércio entre os Estados Unidos, a República Dominicana e os países da América Central, em que todas estas cláusulas foram inclusas.

 

No âmbito da OMPI, o grupo liderado pelos norte-americanos vem apostando nas agendas da área digital e de patentes, nas quais pretende impor cláusulas “Trips +”. É contra este movimento que surge a proposta dos “Amigos do Desenvolvimento”.

 

Sob o discurso do desenvolvimento como prioridade, os países querem não só barrar a ofensiva dos países mais ricos quanto virar a mesa dando um novo rumo para a OMPI. Na proposta de Agenda, as nações querem inclusive alterar os estatutos da organização para incluir este conceito entre seus objetivos, bem como a redefinição da metodologia de tomada de decisão na organização, colocando a análise sobre efeitos econômicos e sociais como preliminar obrigatória para toda discussão. A OMPI deixaria de ser um órgão guiado pela noção da proteção da propriedade intelectual como fim em si mesmo para passar a promover a cooperação entre as nações para o uso do conhecimento, inclusive de forma colaborativa, para promover o desenvolvimento tecnológico e cultural de seus membros.

 

Para o professor da FGV-RJ, Pedro Paranaguá, a proposta corre o risco de nascer já ´morta´, pois repete movimentos de crítica já feitos antes tanto por intelectuais quanto por países, mas que resultaram em reações que acabaram por aprofundar as regras de proteção dos DPIs. Já desde o final do século XIX, passando por outros três movimentos no século XX, o sistema de patentes foi questionado. “A última tentativa foi no início dos anos 90, cuja reação foi a rodada do Uruguai e a conseqüente criação do TRIPS. “A Agenda para o Desenvolvimento corre risco de não vingar e de ser atropelada por tratados bilaterais com cláusulas ´Trips +´ e por pressões unilaterais vindas principalmente do Escritório Comercial dos EUA (USTR, na sigla em inglês), que emite a temida lista negra: a “priority watch list” de países que, segundo eles, não respeitam os direitos de propriedade intelectual daquele país”, prevê.

 

As críticas desferidas por representantes dos EUA à Agenda do Desenvolvimento vão ao encontro do receio do professor da FGV. “Na visão dos EUA, a proposta parece exagerar significativamente nas obrigações econômicas e aliviar os benefícios econômicos de políticas para forte proteção à propriedade intelectual”, analisou Michael Keplinger, consultor senior do Escritório de Patentes e Marcas dos Escritório de Relações Internacionais dos EUA, no Encontro Nacional de Propriedade Intelectual realizado na capital nacional. Ele restringe a nova compreensão cooperativa à assistência por parte dos países mais ricos para que países ditos em desenvolvimento possam melhorar sua legislação de proteção à propriedade intelectual. Em contraponto à Agenda do Desenvolvimento, o representante estadunidense repetiu o mantra de que a proteção leva ao crescimento econômico e justificou a manutenção da política atual da OMPI apelando para a missão original da organização, “promover a proteção da propriedade intelectual através do mundo”.

 

Sob este argumento, seguem os EUA tentando fazer refletir seu poderio econômico nas regras mundiais de propriedade intelectual como fez no Trips. O próximo round da briga se dará no final deste mês, na próxima assembléia da OMPI. As negociações já estão em curso e, se valer o exemplo da OMC, os interesses antagônicos dificilmente chegarão a um resultado consensual. Para o professor Paranaguá, que vem acompanhando os debates e irá a assembléia, as perspectivas não são animadoras, pois as divergências entre o grupo dos países desenvolvidos e os chamados Amigos do Desenvolvimento nas últimas reuniões preparatórias têm emperrado o avanço das negociações. Este quadro, somado ao fato da pauta desta reunião ser extensa, pode acabar em pouco ou nenhum resultado final, postergando o debate para uma próxima assembléia da OMPI.

Agência Carta Maior

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