Produção e Consumo de Cultura

 

 

 

 

“Desde a música sertaneja, de Roberto Carlos ao erudito, dos folhetos de cordel, da telenovela, da internet, do mercado de arte, todas essas incidências do que se entende por cultura converteram-se num marcador sensível e revelador da sociedade de apartheid em que vivemos. As experiências culturais estão marcadas pelo sentido de que cada um está encaixado, encastoado, numa espécie de nicho do qual não pode sair. Isso não acontece só no Brasil, mas em Paris, em Bombaim, em Nova York. Claro, o contingente de estudantes que têm acesso ao ensino superior no nosso país é ridículo perto desses países. E, mesmo assim, sem a presença e a participação da universidade brasileira a atividade cultural seria impensável.

 

O fato é que os países desenvolvidos também não têm conseguido integrar as novas gerações, não só o Brasil. É preciso mirar os padrões de consumo e a produção cultural através dos marcadores sociais. Claro que nós, como especialistas em cultura, podemos nos contentar, nos deliciar, nos satisfazer em reter algumas experiências da atividade cultural e atentar para o sentido delas. Só que o sentido geral não é a atividade do artista, por exemplo, no mercado de arte, pois esse mercado está encastelado num público, numa audiência de endinheirados. Não há como sair disso, não há como falar de artista nenhum fingindo que esse artista pertence ao mundo das nuvens.

 

O panorama das atividades de produção e consumo de cultura em nossa sociedade contribui para reforçar as divisórias do apartheid, na medida em que replica as distinções, as pretensões, os reclamos, as expressões emanadas nos diferentes níveis hierárquicos da pirâmide de distribuição do que tem valor: diploma, dinheiro, cultura, instrução, poder. O padrão das práticas de lazer e consumo cultural, embora, é verdade, crescentemente dependente da posse de equipamentos domésticos, obedece a modelos de conduta e de recepção dos diversos grupos sociais. Ou seja, não se produziu ainda na nossa sociedade nenhum grupo social que viva de cultura ou que só produza cultura. Eles estão encaixados em hierarquias que não são propriamente culturais.

 

Digamos que a cultura é uma espécie de espuma de todas essas peneiras. E é claro que a produção também se organiza para atender as diferentes espumas. Ou seja, temos a indústria cultural, todos os nichos de atendimento à fruição de elite, a universidade elitizada. Toda essa distribuição de fomento à atividade cultural reflete exatamente a distribuição das formas de capital no mundo social real.

 

Como vocês vêem, tenho muita dificuldade de pensar a cultura isolada das experiências do mundo social. Em linhas brutas, esse é o esforço do apartheid a que me refiro, no interior do qual coexistem os meios de comunicação de massa, os nichos protegidos do ensino superior público, a área da pesquisa e da atividade intelectual profissional, o mercado de arte no qual se efetuam trocas mágicas de bens, dinheiro e carisma. Todos esses agentes e entidades empenhados em competir numa luta feroz pela conquista de uma voz. A fala do Hermano é notável nesse sentido, ele mostra que os grupos periféricos querem ter uma voz – e voz expressiva. Isso é uma luta hoje.

 

Nada disso impede que a gente possa prestar atenção às complexidades do produto cultural, num outro tipo de debate. Uma coisa que sempre pensei em escrever e nunca fiz, por exemplo: por que gosto de Roberto Carlos? Penso em montar uma justificação erudita. A gente poderia entender todos os cantores de sucesso, Roberto Carlos, Caetano, Frank Sinatra, como uma reelaboração de técnicas operísticas. Um grande cantor é uma pessoa que maneja, com ou sem consciência, técnicas barrocas de voz, ou seja, que fala cantando, que canta falando, que usa um crescendo. E todas as técnicas que produzem emoção, sentimento, e ecoam na experiência do espectador não têm muito a ver com o que se diz na letra e no verso. Mesmo naquela fase pseudo-religiosa do Roberto, por exemplo, em que as letras são pavorosas, a forma da emissão, de como se exprime para produzir a emoção está lá intacta, inteira.

 

Com técnicas muito antigas de folhetim, do melodrama, a telenovela faz uma encenação diária do aspecto que é central nas relações de sociabilidade: privilegia relações primárias e afetivas. A dinâmica de qualquer telenovela é sempre a mesma, assim, todo mundo pode se dar bem nessa sociedade de relações primárias e afetivas.

 

A coluna social é outro tema do âmbito da cultura pelo qual ando me interessando ultimamente. Tanto O Estado como a Folha têm a suacoluna social. O Jornal do Brasil tem quatro! Por que existe tanta propaganda gratuita de quem não precisa de propaganda? Pois esse é um sintoma muito mais expressivo da atividade cultural no país do que vários outros conhecidos. Eis o recado que eu queria dar por enquanto.”

 

 

Funk, Hip-hop, Orkut e a geléia geral da cultura

Intelectuais têm visões diferentes sobre a cultura, mas concordam quanto aos problemas da lei de renúncia fiscal. Leia mais aqui…

 

 

 

 

O DEBATE – Intelectuais têm visões diferentes sobre a cultura, mas concordam quanto aos problemas da lei de renúncia fiscal

 

Do funk às leis de incentivo, das comunidades do Orkut à crítica de arte, não faltou assunto no encontro sobre cultura, mediado pelo jornalista Daniel Piza, colunista de O Estado, para a série Aliás Debate. Nas várias intervenções feitas, desenhou-se uma elite que ainda prefere se manter distante das manifestações culturais que brotam nas periferias brasileiras, mediadas inclusive pelas novas tecnologias de comunicação.

 

Sérgio Miceli falou em apartheid cultural brasileiro. A partir dessa premissa, qual seria o melhor papel do Estado: não interferir, ser paternalista ou adotar outro caminho?

 

VIANNA – O Estado age, porém as decisões importantes não foram tomadas pelo Ministério da Cultura. No caso do funk, a ação veio da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio, ou seja, o funk nunca foi discutido na Secretaria de Cultura. O Orkut é caso para o Ministério Público e o desenho animado japonês, para o Ministério da Justiça. Esses exemplos mostram que o Estado, como poder, deve tomar decisões sobre política cultural, no entanto o pensamento sobre cultura está dividido em ministérios diferentes – determinados tipos de cultura são casos de polícia e as tradicionais ficam para o MinC. O governo federal tem uma visão geral do que acontece em diferentes cantos no Brasil e pode conectar essas informações. Eu acompanhei o início da produção do funk, pessoas que aprenderam a trabalhar com computador, com programação de instrumentos eletrônicos sem saber inglês, por intuição. Se tivessem acesso a outras informação, teriam outros interesses. O Estado tem esse papel de articulação, mas às vezes tem atuado mais no sentido de criar barreiras.

 

SANTOS DE MIRANDA – Gostaria de aprofundar a discussão sobre a produção da periferia. O funk carioca já teve sua história pesquisada e, o hip-hop paulista tem sido discutido por especialistas. Essa cultura periférica, periférica porque produzida na periferia, à margem das grandes empresas de comunicação, tem uma força fantástica, um código próprio, estabelece uma economia própria, produz em quantidade e distribui esses produtos na própria periferia. O grafite, bastante transgressor, possui conteúdo e deve ser visto como manifestação estética. A transgressão deve ser trabalhada pelo Estado e pela sociedade de forma clara, aberta e corajosa. Transgressão na cultura é algo profundo. Até o velho samba foi censurado no início dos anos 20 no Rio. A transgressão na linguagem pura e simples da arte estabelecida no teatro, na dança e na música, provoca discussão e gera debate. A provocação está aí e precisa ser abrigada. E quem vai abrigar? O mercado depende de resultados financeiros, não abrigará esse tipo de expressão. Cabe à sociedade ou aos organismos que a representam e ao próprio Estado abrigar essa arte. É difícil imaginar o teatro de José Celso Martinez Corrêa bancado pela General Motors. Pode até acontecer, mas internamente não funciona.

 

Miceli, você gostaria de comentar a respeito do Estado e do apartheid ?

 

MICELI – Só para provocar, do ponto de vista da legislação de apoio à cultura, a Lei Rouanet, tem algo de perverso nos financiamentos: a renúncia fiscal deveria estar a favor dos produtores reais, mas na verdade grande parte dessa verba produz acervos de instituições ligadas ao sistema financeiro. Isso desvirtua completamente a idéia de renúncia fiscal. Por que o Estado tem de financiar a formação de acervos privados? Nos Estados Unidos, onde existe uma dotação privada monumental, é dinheiro privado que vai para as artes, não é renúncia fiscal apenas. Eu não tenho nada contra a lei, só que a verba deveria ir para intelectuais e artistas que precisam de subvenção. O que acontece no Brasil? Aqui estão criando mastodontes, institutos culturais que financiam acervos privados de artes plásticas, de fotografias. Alguns dizem que essas instituições preservam coisas que seriam destruídas. Há acervos públicos. Por que não canalizar dinheiro para protegê-los?

 

GIANNOTTI – Antes de entrar nessa discussão sobre o apartheid, queria fazer umas observações. Primeiro, quando falo em crise da universidade, falo em termos gerais. Sim, falo mal da universidade brasileira, mas a universidade no mundo está ruim. A crise do ensino médio na Europa é monumental. Quanto ao problema do apartheid, precisamos mudar o conceito. O apartheid está no Japão, em outros países da Ásia. Não vamos confundir a boa distribuição de renda (estou inteiramente de acordo que vivemos num mundo miserável) com a cultura que está por vir. Por isso faço questão de não separar arte e ciência, porque hoje temos mais ciência e tecnologia, como um contínuo na construção e na divulgação dessas idéias. Por exemplo, a teoria da relatividade não será massificada. O funk não será massificado, ele corresponde a uma parte importante da população, mas eu não vou ouvi-lo na minha casa. Agora, que você (Miceli) goste do Roberto Carlos, acho perfeitamente natural. No entanto, explicar sua música com uma técnica operística, aí é complicado.

 

MICELI – Dei o exemplo do Roberto Carlos propositalmente. Para mostrar como uma atitude reflexiva sobre a produção cultural não é uma algo que possa se guiar por censura. Existe atividade cultural interessante em todos os domínios. Por exemplo, sou assinante das séries eruditas da Sociedade de Cultura Artística e da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, mas gosto do Roberto Carlos, do Caetano, compro música popular. Esses repertórios são próximos a mim. O exemplo do Hermano Vianna vai além, mostra grupos que estão construindo um repertório diferente e cuja experiência de vida e de sensibilidade é interessante nos seus termos.

 

É verdade que se a crítica de um evento é boa, o evento é chato? Por que a cultura é sempre explicada de maneira teórica?

 

MICELI – O jornal convida quatro pessoas com experiências culturais reflexivas, cada um no seu domínio, que depois de anos de trabalho desenvolveram um pensamento sobre sua atividade…Discordo totalmente que reflexão tire a liberdade cultural. Mesmo a atividade cultural feita como o Hermano Vianna descreve, ao se produzir o funk, já se produz a metalinguagem sobre ele. Então, não tem saída. Qualquer atividade cultural produz uma reflexão. Nesse sentido, como pensar em cultura sem reflexão?

 

VIANNA – Enquanto fazia o meu trabalho de campo de antropologia, criei a primeira bateria eletrônica que o DJ Marlboro usou. O meu orientador, o antropólogo Gilberto Velho, disse que era o equivalente a dar um rifle a um chefe indígena. Hoje alguns dos fenômenos do campo da cultura cruzam territórios. Por exemplo: Gustavo e Otávio Pandolfo, os gêmeos grafiteiros de São Paulo, abriram uma exposição na Galeria Fortes Vilaça. Há muito tempo o grafite participa de mostras de arte contemporânea. Mas o fato de os gêmeos estarem num espaço como a Fortes Vilaça mostra também que a atuação das secretarias de cultura de São Paulo e Rio têm sido bem diferentes. Não é à toa que o hip-hop paulistano nunca teve problemas de criminalização. Quando o hip-hop surgiu no largo São Bento, houve uma série de programas dos governos paulistas. O cantor Mano Brown, no fim dos anos 80, percorreu o circuito de escolas públicas de São Paulo dando palestras. O MinC faz hoje um trabalho interessante, que pode gerar uma rede de produção cultural de procedências diferentes, não só relacionadas com a periferia.

 

Há um conflito. A procura de estudantes de classe média e alta pelo funk e aproximação com a periferia não contradiz o discurso de que a cultura está sendo produzida em guetos?

 

MICELI – Tenho um orientando que pesquisa esse movimento em São Paulo e também o pagode. Como eu não conhecia o repertório, pedi que ele fizesse uns CDs, vou e volto da USP ouvindo pagode para discutir o assunto com ele. E o que parte do trabalho dele mostra? O pagode realmente tem raízes populares, no entanto, na aclimatação em São Paulo, se tornou uma espécie de reserva cativa de universitários sofisticados. Esse trânsito da cultura erudita para a base também é da base para cima. A música de Villa-Lobos sem materiais populares é impensável! Na última peça que vi do diretor teatral Antunes Filho, todos os gestos, as referências, o repertório têm origem popular, em uma montagem erudita e sensacional.

 

GIANNOTTI – Ressalto aí o aspecto duplo. Se de um lado nós temos, como o Miceli disse, uma reflexão que traz coisas novas, de outro temos no mesmo processo à moda. De repente temos uma nova teoria literária e o mundo fala durante dez anos dessa moda literária. Por um lado é criativo, é contra o apartheid, mas de outro também cria estereótipos. Como o conceito não é mais paciente, atinge uma faixa da população e dos próprios críticos, em que a repetição se torna inteiramente automática.

 

Boa parte do dinheiro que vai para a cultura é público, não só pelo patrocínio direto das estatais, mas pela renúncia fiscal. Esses recursos chegam para a arte nova da periferia?

 

SANTOS DE MIRANDA – Raramente. No caso do Sesc, uma instituição que é bancada com recursos provenientes das empresas, trata-se de uma contribuição compulsória, não voluntária das empresas, portanto tem um quê de imposto, um quê de contribuição pública. O Sesc, assim como as instituições chamadas de sistema S, que na verdade formam um conjunto de pequenos sistemas, realiza uma ação de caráter de assistencial. Com relação à renúncia fiscal, certamente existe a necessidade de aperfeiçoar a lei, porque grande parte do dinheiro é utilizado de maneira inadequada. Não diria, apenas, com relação à formação de acervos ou de toda infra-estrutura vinculada ao poder financeiro, refiro-me, sobretudo, ao compromisso de ter uma ação de caráter público e não privada, como é feita hoje. O recurso público é utilizado de maneira privada porque, em última análise, visa a expandir negócios e ao lucro. O MinC tem se esforçado na revisão da lei – ultimamente a aperfeiçoou, porém ainda tem avanços a serem feitos. Essa questão é delicada, principalmente por causa do financiamento para a inovação. Não creio que esses administradores de centros culturais tenham autonomia para investir no novo. No caso do Sesc especificamente, é um compromisso contemplar todas as tendências mas os organismos financiados pela renúncia fiscal não têm esse compromisso.

 

MICELI – Tem outro aspecto: a lei foi pensada, nos países desenvolvidos e aqui, para proteger as artes que não têm rentabilidade. Não para a indústria cultural rentável, mas para a música erudita, para a dança, para a ópera, para o teatro – há trabalhos de economia da cultura que mostram que essas atividades não sobreviveriam sem financiamento público. O que o Danilo de Miranda disse sobre a coisa pública é decisivo, o que importa é a entidade. O problema dos acervos privados está no bloqueio: ninguém tem acesso a eles, daí minha irritação. Ninguém quer falar sobre o financiamento.

 

Há artistas que são clientes do dinheiro público. Outros não são. Recentemente alguns se manifestaram politicamente e causaram polêmica. Qual é a relação da arte com a política e da política com a arte à luz dessas manifestações?

 

MICELI – Quais seriam essas manifestações?

 

De artistas que se encontraram com o presidente Lula e deram apoio político a ele.

 

VIANNA – Não era um convite para um encontro de adesão. Mas, sim, para discutir idéias com o presidente. Não vou defender as declarações, mas é simplificador dizer que as pessoas declararam aquilo porque são clientes do Estado. O Wagner Tiso tem uma carreira sólida e na declaração dele havia opinião política. Ele assumiu que foi uma fala infeliz, mas tomou uma posição política, não penso que seja por financiamento. Volto à minha posição de otimista incurável. Com relação a essas instituições e institutos criados com dinheiro de lei de incentivo, penso na Enciclopédia de Arte Contemporânea Brasileira, produzida pelo Itaú Cultural. Consulto todos os dias pela internet, sua existência é valiosa. Outra coisa é a disponibilização, pelo Instituto Moreira Salles, dessa coleção de 78 RPMs, que qualquer um pode ouvir. Podemos criticar, mas temos de valorizar as ações positivas produzidas com esse dinheiro. Também está havendo uma mudança quanto ao dinheiro que chega aos grupos culturais de periferia. Está virando moda, com todo o efeito perverso que as modas têm, mas é responsabilidade social. Grupos como o Afro Reggae recebem patrocínio de grandes empresas. É uma jogada de marketing, mas é importante valorizar. No entanto, o ministério pode destruir tudo.

 

GIANNOTTI – Toda arte tem uma dimensão política maior ou menor, isso é inevitável. Mesmo quando retomamos ao projeto do século 19 de fazer a arte pela arte, havia um sentido de afastamento da política. O meu problema é a relação entre política e partido, embora ache normal um artista se filiar a um partido e produzir para ele. Temos bons exemplos, basta ver o que foi o cinema russo após a revolução de 17. O que se torna intolerável é quando o partido começa a determinar regras sobre determinadas formas artísticas. No caso do cineasta Sergei Eisenstein, ninguém dirá que O Encouraçado Potemkin não é um filme político, mas não deixa de ser uma obra-prima. Também ninguém negará que Ivan, o Terrível, seja uma obra-prima. Porém, foi proibido por Stalin, porque não correspondia à atmosfera de culto à personalidade que estava criando.

 

MICELI – Em uma coisa eu concordo com o Giannotti, é impossível separar arte e política. Mas há intelectuais e artistas que podem se pronunciar a favor desse ou daquele candidato, não vejo problema. Pelo contrário, acho que intelectuais, às vezes corajosos, se lançam num debate público expondo suas próprias posições em relação a esse ou aquele partido e se oferecem quase que em holocausto, porque na verdade, colocam em questão a sua autonomia. Mas vamos pensar no caso dos cineastas brasileiros ou dos franceses, ambos dependem do Estado, a pergunta a ser feita é a seguinte: é razoável a política cultural francesa sobre o cinema? Sim, ou não haveria mais cinema francês.! Na França há uma proteção financeira para a produção, reserva de mercado em relação ao número de dias em que são exibidos os filmes franceses, cotas para os norte-americanos. É a única maneira de proteger esse segmento. Seria favorável se o governo brasileiro, através de entidades com critérios, fizesse a mesma coisa. Um cinema que não dispõe dos recursos de publicidade e de distribuição como o americano tem, não tem outra saída a não ser se proteger.

 

GIANNOTTI – Não há no cinema francês intervenção de lobbies. Há mais nos Estados Unidos.

 

MICELI – Não, de jeito nenhum. Não há. Concordo totalmente com o que o Hermano falou sobre a parte do serviço público dessas entidades, também sou favorável. O problema de que a renúncia não foi pensada para financiar a autoridade cultural do sistema financeiro, para dizer com todas as palavras. A renúncia foi pensada para proteger grupos de produtores que tinham problemas de acerto nas contas, entre o que ofereciam e o que conseguiam apurar de receita na bilheteria. O ponto da discussão é examinar todas as dimensões através das quais essa renúncia está dando origem a outro setor produtivo. O problema grave da cultura é de autoridade, da afirmação de um discurso, de uma legitimidade do que se fala.

 

Alguns dizem que hoje o professor luta para ser mais um assalariado. Ensina a cultura da elite para um adolescente que não quer apreender conceitos e sim sua prática. Como lidar com isso? É o caso da universidade se aproximar do universo jovem? E, ao fazer isso, ela não perde o seu caráter formador?

 

GIANNOTTI – Vou responder o mais rápido possível, porque não gosto mais de falar sobre universidade. Perdemos o projeto, acabou!Enquanto não vier algo novo, desculpem, não haverá reforma universitária, não haverá nada. Esse projeto foi perdido no governo do presidente Fernando Henrique. Sobre a primeira pergunta: vejam o que os nossos professores estão ganhando. Um professor doutor recebe, em geral, R$ 4.500, tirando os impostos. E se esse professor tiver dois filhos, creio que não estará em boa situação. Então, ele não ensina pelo salário. Discordo quanto a ensinar a elite. Pelo contrário, assistimos a uma massificação das universidades. O que acontece: o estudante de história não sabe história, o estudante de sociologia não sabe sociologia. A experiência que temos no Cebrap de ler textos de pós-graduados é de chorar. A quantidade de gente que eu não aprovaria num vestibular, e hoje é doutor, é enorme. E o problema são os sindicatos. Eles estão dentro das universidades públicas e tomam uma posição padronizante, que impede a flexibilizar a instituição, e respondem a questões que não são propriamente culturais. A última coisa: temos a disparidade das universidades privadas, aí o problema está na falta de um processo real de avaliação. Só existe um processo funcional. Tanto a primeira questão como a segunda dependem, ao meu ver, da construção de um sistema de avaliação, que é incipiente no Brasil.

 

Associa-se à cultura popular uma idéia de autenticidade ou de nacionalidade. Hermano, você que usou esse termo algumas vezes, acredita que, de uma certa forma a história do funk pode ser análoga ao que aconteceu no futebol, que veio da Inglaterra e se tornou um ponto de identidade nacional? Em que medida, na hora em que o funk é divulgado em quadros como o da Regina Casé na Globo, ele não passa por um processo de pasteurização?

 

VIANNA – Sobre a autenticidade, eu fiz um projeto chamado Música do Brasil, viajamos por 82 municípios gravando músicas chamadas de folclóricas ou tradicionais – termos que tentam encapsular essas expressões em uma determinada regra e padrão. Recentemente, foi lançada uma caixa com as gravações da missão folclórica realizada por Mário de Andrade,resgatadas pelo Sesc, pela Secretária de Cultura e pelo Centro Cultural São Paulo. É uma coisa incrível e agora esse acervo foi lançado no Brasil. Vale sublinhar a existência de uma música do Belém do Pará, já naquela época influenciada pelo telefone, lançado no Rio pela nascente indústria fonográfica. Como isso circula? Como é feita a identificação do que é autêntico ou não? É a produção de algum período de tempo, a identidade está sempre em transformação, é um plebiscito diário. A idéia, por exemplo, de que o samba é considerado a música autêntica brasileira não existiria sem a difusão da polca, música produzida no império austro-húngaro, que se difundiu em todo o mundo no século 19, uma música decisiva para a criação de toda a música afro-americana. A polca, no Brasil, se transformou em maxixe e o maxixe é um dos elementos fundamentais na invenção do samba, tudo isso é resultado da mestiçagem cultural responsável pelo que hoje identificamos como autênticos. As melodias do funk cantado em 1992, já eram melodias de samba, se o Rap da Felicidade tivesse a percussão de uma escola de samba atrás, poderia ser um exemplo de fusão. O que o programa Central da Periferia faz, num primeiro momento, é constatar que isso ocorre e tentar refletir sobre a relação centro-periferia, o que mudou na cultura brasileira. Propor um debate, mais do que difundir.

 

Você disse que o que importa é o debate, a relação centro-periferia. Mas é preciso uma produção crítica. Não fica um atrito entre o direito à expressão e a avaliação reflexiva do que é produzido?

 

VIANNA – Central da Periferia é um programa de auditório por isso é longo, é um laboratório, estamos trabalhando a idéia. A televisão é considerada o lixo da cultura brasileira. Não existe uma reflexão crítica sobre televisão no Brasil. Se você entrar numa livraria e observar a parte de televisão verá que os livros sobre o assunto ocupam uma mini prateleira, geralmente com memórias de pessoas que fizeram tevê. Trabalho na televisão há muito tempo, fiz o Programa Legal, o primeiro com este pessoal que hoje produz o Central da Periferia – Regina Casé e Guel Arraes. Temos uma militância na televisão. Sinto o isolamento por não ter um acompanhamento crítico pela mídia, falando bem ou mal, diante de tudo o que a gente produziu. Já me ofereci para ir a Anpocs, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, e falar: “ Vocês podem estudar como produzimos o programa, porque acho importante para o trabalho que estamos fazendo. No caso do Central da Periferia constatamos a ausência de crítica. A crítica faz com a TV a mesma coisa que faz no lançamento de um filme. Sai aquele texto rápido no dia seguinte à estréia e nunca mais se fala daquilo. No primeiro programa tentamos fazer uma reflexão crítica, porque já contamos que não existirá isso depois. Lembro da Regina Casé no primeiro episódio que foi o de Recife, ela mostrava o grupo Faces do Subúrbio, e uma banda de tecno brega também da periferia de Pernambuco, e dizia: “Tem esse tipo de música que quer mudar o mundo, e esse outro tipo de música que quer celebrar, quer fazer um carnaval. São duas posições inconciliáveis, uma briga com a outra, e eu não quero fazer a conciliação dessas posições, mas quero que estejam presentes aqui nesse auditório”. Participamos de um debate na USP, onde fiquei impressionadíssimo com o nível dos estudantes e das perguntas: “Não vi o programa, mas acho errado isso que vocês estão fazendo. Vocês estão se apropriando da cultura da periferia. É a Rede Globo no seu processo de dominação”. E eu perguntava: “Em que momento você viu isso de forma clara? Estamos dispostos a discutir sobre isso”.

 

Gostaria de ouvir o Sérgio Miceli sobre isso, seu livro foi reeditado, ‘A Noite da Madrinha’.

 

MICELI – Concordo com o Hermano. É estranho que as atividades culturais brasileiras de grande repercussão tenham pouca reflexão. O futebol é um exemplo. Existe muito material, mas pouco estudo crítico, talvez não seja rentável na cultura erudita. Na televisão, recentemente, surgiram alguns trabalhos, mas essas tentativas não conseguem extravasar os muros para uma discussão.

 

VIANNA – O Cebrap fez um estudo sobre a audiência de televisão, comparou o Rio Grande do Norte com uma favela daqui de São Paulo, é um estudo pioneiro, riquíssimo para entendermos como as pessoas vêem televisão. Como isso não é uma prática cotidiana?

 

MICELI – Eu já orientei algumas teses sobre televisão. Uma, brilhante, sobre o programa do Ratinho, premiada na Anpocs, nunca foi publicada. Acabei de orientar outra em que o autor reconstituiu toda a visão da televisão através dessas fontes às quais o Hermano se referiu: a memória das pessoas que fizeram a televisão. Mas acho que existe bloco de preconceitos e de restrições. Os exemplos que ele deu demonstram como a televisão é vista como um objeto ilegítimo. Até conto, na nova introdução que fiz para a reedição do livro, a dificuldade de fazer uma tese sobre a televisão no início dos anos 70. O Departamento de Sociologia era literalmente contra. O professor Florestan Fernandes me chamou na sala e disse: “Olha lá, está escrito na lousa, leia aqui, esses são os assuntos. Você pode escolher um desses”. Diante daquilo escolhi o ISEB. Por causa das aposentadorias(forçadas pela ditadura), pude escrever sobre televisão, porque era preciso ter uma tese rápida e eu já estudava programas de auditório. Uma reflexão interessante é saber o porquê eles não se constituem como objeto de estudo.

 

HERMANO – Fui apresentado neste debate como antropólogo e autor de tais livros. O meu trabalho mais constante das últimas décadas não foi mencionado – meu trabalho em televisão. Em ocasiões chiques as pessoas preferem esquecer a TV.

 

De onde vem o preconceito do intelectual de se debruçar sobre assuntos como futebol ou telenovela? O escritor Edward Said tem uma série de reflexões sobre o intelectual ter um papel dissidente e contestador e, ao mesmo tempo, preservar uma aparição pública. Os intelectuais perderam a influência. Isso não tem a ver com esses preconceitos?

 

GIANNOTTI – Há um velho mote do escritor Oswald de Andrade, muito característico, que a cultura brasileira é antropofágica. Ela se consome a si mesma e não deixa se expandir. Por que? Porque se comeu há muito tempo o Bispo Sardinha, daí que herdamos essa gula. Tenho a impressão que é uma relação com as instituições. O brasileiro pouco se identifica com as instituições onde trabalha. Quero contar uma história: um amigo saiu brigado da direção do Louvre. Fui à despedida dele e nunca se fez tantos elogios a ele, haviam feito um filme, feito uma série de coisas. Então, perguntei: o que está acontecendo? Percebi que eles estavam fazendo elogios ao Louvre. O problema não era exatamente marcar a diferença que esse “desgraçado fez aqui no Louvre”, não. O Louvre como tal absorve a diferença e se confirma como instituição. Isso não existe no Brasil. Apenas queria dizer que cultura é transmissão e é preciso observar como a transmissão é feita hoje pelas novas tecnologias. Isso acontece justamente na periferia do sistema pensável, nos grandes temas dados pelo pensamento brasileiro. Só uma provocação final: vocês estão falando muito do financiamento do novo, ao meu ver, o novo nunca será financiado. Pela simples razão de que é novo, ninguém vai pôr dinheiro numa coisa que está começando a entender. Se ele não se financiar, não há capitalista que botará dinheiro nele.

 

O Brasil tem propensão ao controle. Parte dela deu em nada, como no caso da Ancinav, com a idéia de criar controles sobre um certo tipo de produção cultural que não ocorreu. Essa tendência pode voltar a existir para haver um maior controle justamente sobre as novas mídias, que estão em permanente mutação e por isso exigem liberdade?

 

SANTOS DE MIRANDA – Com relação à questão de controle, realmente há uma discussão séria e um fato recente. Inclusive tive a oportunidade de conversar algumas vezes com o pessoal do ministério sobre a criação do Sistema Nacional de Cultura. Mas tem uma lei no âmbito público, um organismo que estabelece uma espécie de convênio que flui recursos e orientações em nível nacional, estadual e municipal, criando uma espécie de troca de informações, dados e suportes. Quando foi escrito um documento para o governo Lula a respeito de cultura havia essa proposta ao final. Preparei um documento e mandei para o ministério, conversei muitas vezes com o ministro Gilberto Gil e há uma insistência ainda hoje na criação do tal Sistema Nacional de Cultura. É uma coisa que me assusta. O desejo que existe não é de controle, mas de dar espaço, dar oportunidades para todos. Por outro lado, vejo boa vontade no sentido de fazer esse levantamento detalhado de tudo o que acontece no Brasil, em todos os níveis. Não só dessa corrente inovadora e transformadora que vem das novas tecnologias, mas de tudo o que já esta registrado, muitas vezes de maneira improvisada e inadequada. Os pontos de cultura que foram mencionados pelo Hermano, dão um pouco conta desse espalhamento de ações. Mas, do meu ponto de vista, não devem se constituir no sistema que fluirá informações, recursos e orientações como se fosse uma organização nacional que tivesse na cabeça um ministério e seus tentáculos espalhados pelo País, como se as coisas pudessem funcionar de acordo com esse pensamento único, com essa orientação unificada.

 

VIANNA – Nos três exemplos que dei: funk, desenhos japoneses e Orkut, se criarem uma regra para proibir algum tipo de atividade, as pessoas vão encontrar maneiras de burlar a proibição. Assim como o funk permaneceu esse tempo todo sendo produzido, os desenhos animados permaneceram sendo vistos no Brasil, apesar das regras. No caso da TV digital que também citei no início, por exemplo, aparece uma ferramenta como o youtube que faz os vídeos circularem, como é que você vai controlar isso? As agências reguladoras não podem ser nacionais, elas precisam ser globais. Como essas agências surgirão diante da velocidade com que as novidades aparecem? Acho que deve ter uma maneira, de regulamentação, o que não significa controle. A possibilidade de produzir regras de convivência que sejam mutáveis e adaptáveis, diante da velocidade cada vez maior com que as coisas mudam hoje em dia.

 

GIANNOTTI – Todos sabem que o grande controle é o da indústria cultural, temos as gravadoras, as editoras, os jornais. Assinalo a despeito disso, ou melhor, como face inversa disso, que temos um desenvolvimento extraordinário das novas tecnologias, que permitem uma abertura do que era inconcebível há 50 anos. Temos um ganho, uma oportunidade de controle pela indústria, mas ao mesmo tempo, a possibilidade inédita na história de inovações que percorrem as sociedades, isso é um efeito maravilhoso. Em relação ao controle, isso vai depender da política, em particular do sistema partidário. Se tivermos uma democracia exatamente que é capaz de dar voz às várias tendências do País e se o sistema partidário for capaz de quebrar a sua própria burocracia e a do Estado, aí o problema é do controle, um problema de eterna vigilância. Todo burocrata quer controlar e todo o sistema político, se for bem feito, quer liberar. Com relação à cultura nacional queria lembrar: que língua estamos falando agora?! Português? Coloque alguém da Ilha da Madeira falando, se não colocar legenda, ninguém entende. A capacidade que tem o Brasil, desde o início, de formar o seu campo cultural que vai do Oiapoque ao Chuí é extraordinária. Com esta extensão, o fato de nós termos basicamente a mesma cultura, a mesma língua, fora a televisão e as novas mídias é extraordinário. Então, eu não tenho problema nenhum de incorporar nomes japoneses, esquimós, tudo o que for enriquecedor, tudo o que for maleável será bem-vindo.

 

MICELI – O nacional, se for no sentido de identidade, de traços, acho uma bobajada monumental. Agora, na linha do que o Gianotti falou, a despeito da globalização, toda a nossa experiência tem uma circunstância e essa circunstância é inescapável. Roberto Schwarz escreveu um artigo sobre a recepção nacional e internacional da obra de Machado de Assis. Ali apresenta uma drágea compacta de como se dá a tensão entre essas duas dimensões. Sou completamente favorável a pensar as circunstâncias e sou completamente contrário a discutir o nacional no vazio.

 

SANTOS DE MIRANDA – Sobre a questão do nacional na prática, a ação de qualquer órgão vinculado ao interesse público, do ponto de vista cultural, deve levar em conta o aspecto do que é produzido e valorizado localmente. Realmente tem esse papel que o Sérgio Miceli coloca, traz um registro que tem influências, mas, ao mesmo tempo, tensionando permanentemente com o diálogo com aquilo que é produzido fora daqui. Isso, do ponto de vista de programação, ao mesmo tempo em que está lá o Antunes Filho, mencionado aqui, fazendo Pedra do Reino, texto de Ariano Suassuna, de uma maneira muito especial e expressiva, nesse mesmo período recebemos o diretor inglês Peter Brook e esse diálogo tensionado é indispensável para qualquer organismo de caráter cultural, com visão do cultural público e do cultural que possui uma mensagem e leva a uma discussão, uma provocação determinada contra os outros que trazem, por exemplo, o Cirque du Soleil, maravilhoso, e o Fantasma da Ópera, mas que tem uma perspectiva elitista pelo preço e proposta.

 

Compartilhar: