No ano passado, coerentemente com a política do governo de Bush de colocar os interesses do Big Business em primeiro lugar, a Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC, na sigla em inglês) cometeu uma enormidade que passou algo despercebida do grande público – no país e no exterior. O órgão que regula a indústria da comunicação americana, em sentido amplo, simplesmente pôs abaixo o princípio graças ao qual a internet se tornou o que é: o espaço mais livre já concebido pelo homem para a disseminação instantânea de informações, idéias, expressões culturais, facilidades de comércio e formas de entretenimento.
O princípio que surgiu com a internet e a FCC implodiu é o da chamada “neutralidade na rede”, que obriga as empresas de telefonia e televisão a cabo, que abrem aos interessados as portas do sistema (via provedores de acesso) e administram o tráfego no seu interior, a dar a todas e quaisquer mensagens que por ele circulem, geradas por provedores de conteúdo (sites e blogs) e usuários de correio eletrônico, tratamento técnico rigorosamente igual. Ou seja, além de manter o livre fluxo da comunicação online, provedores e teles devem garantir que tudo na internet trafegue com a mesma rapidez, sem privilégios de espécie alguma.
A mudança aprovada pelos fundamentalistas de mercado da FCC permitirá a tais empresas criar pistas de alta velocidade para as mensagens de quem lhes pague o equivalente aos pedágios nas estradas físicas. A questão foi parar no Capitólio. A Comissão de Comércio do Senado americano está para decidir se acaba, ou não, com “a tecnologia livre e aberta que fomenta a inovação, o crescimento econômico e a comunicação democrática”, conforme a apropriada caracterização dos professores Lawrence Lessig, de Stanford, e Robert McChesney, de Illinois, em artigo para o Washington Post, transcrito segunda-feira neste jornal sob o título Nada de pedágio na internet.
Considerando o pantagruélico apetite por lucros das megacorporações do setor, como AT&T, Verizon e Comcast, e a influência desmesurada dos seus lobbies em Washington, não será surpresa se o pior acontecer – a menos que o clamor da “sociedade em rede”, para usar o termo cunhado pelo sociólogo catalão Manuel Castells, impeça os congressistas, neste ano eleitoral nos Estados Unidos, de tomar uma decisão funesta que repercutirá no mundo inteiro. “Sem a neutralidade da rede, a internet começaria a ficar parecida com a TV a cabo”, comparam os professores Lessig e McChesney. “Meia dúzia de grandes empresas controlarão o acesso ao conteúdo e sua distribuição (grifo nosso), decidindo o que você vai ver e quanto vai pagar por isso.”
Contra a possível apropriação da internet pelas gigantes da telefonia e da TV a cabo – aprofundando o processo liberticida de concentração da mídia global, principalmente nos Estados Unidos, de que já participam -, uma das vozes mais eloqüentes que se fizeram ouvir no Senado americano foi a do matemático e cientista de computação Vinton Cerf, de 62 anos, um dos principais criadores, se não o principal, da internet. “As telecoms querem nos impor um modelo do século 19 no mundo do século 21”, diz ele, citado pela revista The Economist. No modelo velho, o usuário pagava por chamada telefônica ou por correspondência despachada. No modelo novo, os usuários, sejam colossos multinacionais ou pessoas modestas, apenas pagam pelo acesso à rede. O preço varia conforme a velocidade da banda utilizada. Não há despesas de transporte ou de entrega.
Se prevalecer a lógica do Big Business, adverte Cerf, “cada vez que eu passar um e-mail, terei de pagar por isso”. E não é que as operadoras de telefonia ou cabo estejam propriamente passando necessidades com o atual sistema de assinaturas, o pagamento de um fixo mensal aos provedores de acesso, que garante a preciosa “arquitetura aberta” da rede. Se esse sistema desaparecer, não apenas estancará ou se reverterá a tendência de diminuição da exclusão digital no mundo, mas também estarão criadas as condições para o controle político-econômico da internet.
Instalados nos postos de pedágio da rede, os magnatas do setor poderão discriminar financeiramente sites e blogs, valendo-se dessa inédita modalidade de poder de polícia sobre o que circula na quase sempre livre autopista da informação.