Por que as raízes africanas e indígenas do sertanejo foram apagadas? Uma análise do embranquecimento cultural na música brasileira

“O embranquecimento cultural e a construção midiática da identidade rural brasileira” – Artigo de Cláudio Ribeiro

O presente artigo busca analisar o processo histórico e sociocultural de apagamento das raízes africanas e indígenas na música sertaneja brasileira, contextualizando-o no quadro mais amplo do embranquecimento das expressões culturais populares. Parte-se da hipótese de que a construção da identidade do gênero sertanejo esteve ligada a políticas de branqueamento e à expansão do agronegócio, que demandou uma representação “limpa” e “civilizada” do campo. O estudo também observa como esse processo não se restringe ao sertanejo, mas se manifesta em outros gêneros, como o pop e o rock, que igualmente apagaram ou desvalorizam suas matrizes afro-indígenas.

Palavras-chave: música sertaneja; embranquecimento; cultura popular; agronegócio; identidades afro-indígenas.


1. Introdução

A música sertaneja ocupa lugar central na indústria cultural brasileira contemporânea. De um gênero rural e regional, passou a ser um produto midiático globalizado, amplamente consumido nas plataformas digitais e associado a um estilo de vida aspiracional ligado ao campo e ao agronegócio (MARTINS, 2018). No entanto, a trajetória desse gênero revela um processo de apagamento sistemático das influências africanas e indígenas que estiveram na base de sua formação.

O presente artigo busca compreender como e por que as raízes afro-indígenas do sertanejo foram apagadas, inserindo essa discussão no contexto maior do projeto histórico de branqueamento cultural no Brasil. Também serão abordados os impactos da pressão econômica do agronegócio e a forma como outros gêneros musicais, como o pop e o rock, também reproduzem processos semelhantes de exclusão étnica e estética.


2. As origens afro-indígenas da música sertaneja

As origens da música sertaneja remontam ao encontro de diferentes tradições culturais no interior brasileiro. De um lado, as modas de viola e cantigas de trabalho trazidas pelos colonizadores europeus; de outro, as expressões rítmicas e vocais africanas, bem como as melodias e temáticas indígenas. Essa fusão gerou formas híbridas de expressão popular que refletiam a diversidade étnica do campo brasileiro (QUEIROZ, 2012; LIMA, 2017).

As influências africanas podem ser percebidas na estrutura rítmica, no uso de síncopes e na prática do canto responsivo, elementos herdados dos batuques e ladainhas trazidos pelos povos escravizados (SANDRONI, 2001). Já as influências indígenas manifestam-se na valorização da natureza, nos temas ligados ao território e em determinadas escalas melódicas pentatônicas que ecoam cantos rituais e de caça (CARVALHO, 2019).

No entanto, à medida que o sertanejo se urbanizou e se aproximou da indústria fonográfica, essas matrizes culturais foram progressivamente silenciadas ou substituídas por elementos associados à música europeia e norte-americana.


3. O processo de branqueamento e a indústria cultural

Desde o final do século XIX, o Brasil foi palco de políticas explícitas e simbólicas de branqueamento racial e cultural (SCHWARCZ, 1993). Na música, esse processo implicou a valorização de expressões estéticas “europeizadas” e a marginalização das formas populares de origem africana e indígena.

No caso da música sertaneja, o rádio e as gravadoras do século XX desempenharam papel decisivo na construção de uma imagem “branca” e “ordeira” do homem do campo (NOGUEIRA, 2020). Essa representação coincidia com o ideal de uma nação moderna e homogênea, distante das marcas da escravidão e da diversidade étnica que caracterizava o Brasil rural.

O surgimento do chamado “sertanejo universitário”, nas décadas de 2000 e 2010, aprofundou esse processo. A estética sonora se aproximou do pop e do country norte-americano, reforçando um ideal de modernidade associado à branquitude, ao consumo e à masculinidade heteronormativa (ALMEIDA, 2021). Nesse contexto, o campo passou a ser representado como espaço do agronegócio próspero e “civilizado”, e não mais como território de luta e resistência cultural.


4. O papel do agronegócio e a economia da imagem branca

O avanço do agronegócio nas últimas décadas redefiniu as dinâmicas simbólicas do sertanejo. Como principal patrocinador de shows, festivais e artistas do gênero, o setor passou a controlar a narrativa visual e ideológica associada ao campo (SILVA & PEREIRA, 2022).

A figura do “agro pop” — difundida em campanhas publicitárias e na estética de artistas sertanejos contemporâneos — consolidou uma identidade rural embranquecida, marcada por símbolos como o chapéu de cowboy, as caminhonetes e o consumo de luxo. Essa imagem, ao mesmo tempo, apaga as presenças negras e indígenas no campo e legitima o poder econômico e territorial das elites agrárias.

Trata-se, portanto, de uma forma contemporânea de colonialidade estética, na qual a cultura popular é apropriada e higienizada para servir a interesses econômicos e políticos.


5. O apagamento em outros gêneros: pop e rock

O fenômeno do embranquecimento não se restringe ao sertanejo. O pop brasileiro, embora fortemente influenciado pela música negra norte-americana (soul, funk, R&B), frequentemente reproduz padrões eurocêntricos de vocalização, beleza e performance (GOMES, 2015). Da mesma forma, o rock nacional — surgido nos anos 1950 e 1960 — adaptou ritmos de origem afro-americana, como o blues e o rhythm and blues, mas os reconfigurou dentro de uma estética branca de classe média (VIANNA, 1987).

Esses processos indicam que o apagamento das raízes afro-indígenas não é um fenômeno isolado, mas parte de uma lógica estrutural de colonialidade musical, na qual determinadas sonoridades e corpos são sistematicamente invisibilizados em favor de um ideal estético branco e urbano.


6. Conclusão

O apagamento das raízes africanas e indígenas do sertanejo — e de outros gêneros musicais — é resultado de um longo processo histórico de branqueamento cultural que acompanha a formação da identidade nacional brasileira.
Ao privilegiar a estética branca, cristã e urbana, a indústria musical e o agronegócio reforçam uma visão monocultural do país, que nega sua própria pluralidade étnica.

Reconhecer e valorizar as matrizes afro-indígenas do sertanejo não significa apenas recuperar um passado esquecido, mas reivindicar uma nova escuta do Brasil — uma escuta que reconheça a complexidade de suas vozes, ritmos e territórios.
Somente ao enfrentar o racismo estrutural que permeia a cultura é que será possível construir uma narrativa verdadeiramente plural e democrática da música brasileira.


Referências

ALMEIDA, Tiago. Sertanejo universitário e a estética da branquitude no Brasil contemporâneo. Revista Música Popular, v. 18, n. 2, p. 45–62, 2021.

CARVALHO, Larissa. Cantando a terra: heranças indígenas na música rural brasileira. São Paulo: Edusp, 2019.

GOMES, Djamila. A estética do embranquecimento no pop brasileiro. Revista de Estudos Culturais, v. 6, n. 1, p. 112–129, 2015.

LIMA, João. Viola, batuque e reza: a formação do sertanejo de raiz. Belo Horizonte: UFMG, 2017.

MARTINS, André. Do caipira ao agro pop: transformações do sertanejo na era da globalização. Revista Latino-Americana de Música, v. 12, n. 3, p. 88–104, 2018.

NOGUEIRA, Maria Fernanda. O rádio e o mito do homem do campo: a invenção da identidade sertaneja no século XX. Revista Brasileira de Comunicação e Cultura, v. 9, n. 2, p. 55–78, 2020.

QUEIROZ, Renato. Modas e memórias: a música rural no Brasil do século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917–1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870–1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SILVA, Ana Carolina; PEREIRA, Eduardo. O agro canta: indústria musical e hegemonia simbólica no sertanejo contemporâneo. Revista de Comunicação e Cultura Popular, v. 4, n. 1, p. 21–39, 2022.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

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