Onde ainda se dança a cana-verde, a marrafa, a ciranda

A noite no sertão de Ubatumirim é uma dessas coisas espetaculares. O céu fica tão carregado de estrelas que dá a impressão que não vai agüentar tudo e que algumas vão despencar. E despencam mesmo! Cada estrela cadente enorme, riscando o céu de alto a baixo, vagarosas, sem a pressa das que a gente vê por aqui…

E foi debaixo desse céu que ouvimos violeiros do local, cantando modas antigas e emboladas, como uma que dizia assim:

Perguntai pra Santo Antônio
Se eu podia namorá
Ele foi me respondeu
Se for pouco num faiz má.
Bebo estanho derretido
Lojo bala de canhão
Eu foi lá nas Alemanha
Pra brigá cos alemão
Eu dei tiro de fuzi
Responderam de canhão

Depois houve baile. Na casa de chão batido, o pessoal se sentou em bancos em volta do quarto. Alguns ficaram na porta, olhando, os violeiros atacaram a música e dentro em pouco a sala estava cheia de poeira levantada pelos dançadores. Luz? De um lampiãozinho e de um toco de vela. Grande foi a nossa surpresa quando daí a pouco o dono da casa pede uma cana-verde e a turma começa a dançar. Os violeiros cantavam:

Dançe, dançe minha gente
Não se escoste na parede
Que o salão é muito grande
Pra dançar a cana-verde…

E depois dançaram ainda a ciranda, e a marrafa, esta última completamente desconhecida para nós, de roda também como as outras, e típica daquela região litorânea (Parati, Ubatuba, Ilha Bela).

A cana-verde e a ciranda são danças de roda paulista originárias de Portugal. A marrafa, ficamos sabendo depois, não tem relação alguma com uma dança portuguesa das marrafas, ou das marradinhas.

Na marrafa que vimos no sertão de Ubatumirim, formam-se duas rodas, as mulheres na roda de dentro, os homens na de fora, vão balanceando um na frente do outro, depois dançam juntos andando ainda em roda, e quando o cantador diz “quebra na marrafa” trocam de par, ficando a balancear na frente de outra dama.

Crendices

Interessantes, também, as crendices que registramos naquela localidade. Como exemplo, aqui vão algumas:

Quem for mordido de cobra, não pode “fazer a cara” (barbear-se), antes de quinze dias, mesmo que tenha tomado remédio de injeção (soro anti-ofidíco). Porque se o fizer, morre.

Pra mordedura de cobra, o remédio melhor é o coração da cobra, socado com alho e comido no mesmo instante.

Mangueira ou jabuticabeira em que menina-moça sobe nunca mais dá fruto. “Dá é uma quantidade de frô que nunca se viu, mais fruta, nunca mais que dá”, foi como nos explicou uma mulher, na sua linguagem poética.

Mulher que tem criança, que se olha no espelho antes de um mês, “dá um ar nela” que nunca mais sara.

Não se deve cortar o cabelo de crianças antes de batizar, pois o “coisa ruim” (eles nunca falam o “diabo”) carrega os cabelos da criança.

A roça e os estragos da saúva

Esses são aspectos pitorescos da vida de gente do sertão de Ubatumirim. Infelizmente, porém, nem tudo para eles é pitoresco. Há por exemplo a luta pelo pão de cada dia, que lá em cima é tremenda.

A terra é excelente.

– Tudo o que nóis planta dá, — dizem eles. — O pior é o ralo da saúva.

A SPES pretende solucionar o problema naquele local. Como é muito longe, não adianta nem pedir ao pessoal da Casa da Lavoura. Não vai ninguém. Então, a SPES adquiriu uma bomba para exterminar as formigas. Agora vai arranjar alguém que saiba lidar com ela.

Ali no sertão o combate à saúva é feito com formicida, trazida pela SPES. Mas em todos os outros núcleos do litoral existe um processo muito engraçado de defender as roças: é o “engodo” da saúva. Isto é, a partir das duas da tarde, até a hora do sol se pôr, os caiçaras ocupam-se em fazer grandes feixes de ervas que a saúva aprecie, e vai pondo tudo na porta dos formigueiros, na saída dos grandes “murundus”, e no trilho das formigas. Como é que eles ficam sabendo que é daquilo que elas gostam (e ainda por cima explicaram que o gosto da saúva tem o costume de mudar…), lá isso a repórter não ficou sabendo… Mas que dá resultados, isso dá.

Falta de transporte

Acontece que a falta de transporte é uma grande aliada da saúva para infernizar a vida dos caiçaras. Eles costumam plantar milho, arroz, feijão, mandioca, cana, cará e amendoim. Acabam vendendo só a farinha de mandioca (fabricada por eles mesmos em lugares especiais — a casa da farinha), porque é o mais fácil para ser carregado até Ubatuba. Se houvesse transporte fácil poderiam aumentar suas roças, e vender ainda o seu café (dos velhos pés ainda em produção), bananas, ovos e galinhas. Mas, […] o sertão do Ubatumirim fica a nove horas a pé de Ubatuba, por terra, ou duas horas de caminhada e mais duas horas de barco. Aliás, toda a gente dos núcleos litorâneo, a praia de Ubatumirim, as praias da baía de Pinciguaba, e o distante Camburi (que fica a três horas e meia de barco, de Ubatuba), toda essa gente vive bloqueada pelo mar. Completamente afastada de tudo. Para uma dessas pessoas ir à Ubatuba, vender a sua mandioca, leva horas e horas de canoa. E é chegar e ir vendendo, pelo primeiro preço que oferecem, a fim de que a noite não os surpreenda no mar. E em casos de doença, então? Recentemente uma mulher da ilha da Almada morreu numa canoa, depois de ter tido um filho morto, quando era levada para Ubatuba.

Por esses motivos a SPES deseja ter um barco. O casco já foi adquirido. Falta o motor de centro. Uma vez conseguido isso, o barco da SPES ficaria fazendo a ligação entre todos esse núcleos e Ubatuba. Os caiçaras poderiam ir à cidade vender o produto de suas roças e nada lhes seria cobrado pela passagem; em caso de doença, o barco num instante estaria levando o doente para Ubatuba; e as professoras, obrigadas a dispender quantias elevadíssimas do seu ordenado, também se beneficiariam.

Acreditamos que a “operação caiçara”, determinada pelo governo do estado, venha a obter melhorias na vida, dos caiçaras. Mas, na realidade, se o governo quissese fazer alguma coisa, já, por aquela gente do litoral norte, o mais acertado seria contribuir para a compra de um motor de centro para o barco da SPES.

(PS: Dizem que o governador tenciona pôr em funcionamento uma linha de barcos para ligar aquelas praias. Isso também viria ajudar muito. Acontece que um barco de carreira, com horas certa, não poderia socorrer doentes, que não tem hora para adoecer. Por isso repetimos: o barco da SPES ainda seria mais útil que uma linha de carreira).

(Ramos, Regina Helena de Paiva. “Onde ainda se dança a cana-verde, a marrafa, a ciranda”. A Gazeta. São Paulo, 29 de agosto de 1959)

Regina Helena de Paiva Ramos

 

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