Luiz Ricardo Leitão
Enquanto na Ásia 2004 se despedia com uma catástrofe que suscitou reflexões sobre a caótica presença da espécie humana no planeta, por aqui tudo terminou na lengalenga de sempre. O Brasil esperou por 2005 discutindo o sexo dos anjos: somos obesos ou famintos? A grande imprensa nacional, discípula da velha lógica metafísica do Ocidente, adora esses enunciados trágicos, mas até os cientistas palacianos sabem que há muito mais carne debaixo desse angu…
Lembro-me que nos anos 80 alguns, sociólogos dos príncipes deliciavam- se com a expressão “Belíndia”. Éramos uma Bélgica e também éramos uma Índia, ou seja, uma parte de Pindorama vivia em condições socioeconômicas dignas do chamado Primeiro Mundo e outra porção, decerto bem mais extensa, sobrevivia em meio às velhas agruras do Terceiro Mundo. No item da “causa mortis”, em especial, no qual as doenças cardiovasculares, a exemplo da Europa e dos EUA, ocupavam o primeiro posto, havia o elevado índice de jovens mortos em acidentes de trânsito ou assassinados por armas de fogo, assim como um nada insignifi cante número de vítimas de doenças há muito erradicadas em diversas áreas do planeta – a malária, a doença de Chagas, a esquistossomose e até a nossa badaladíssima dengue hemorrágica.
Como se vê, sempre padecemos as mazelas do desenvolvimento “desigual e diferenciado”. Possuímos porém uma vantagem sobre a maioria das nações dependentes: somos pródigos em riquezas naturais, biodiversidade e recursos hídricos. E dispomos de centenas de milhões de hectares de terras cultiváveis, embora, por força da perversa concentração fundiária, só aproveitemos 40 milhões, uma área idêntica à dos argentinos. Por isso, em meio às sobras do eterno banquete dos “coronéis” do campo e da cidade, os criados da casa-grande continuam a fazer sua feijoada apimentada, enquanto o Severino retirante, com sangue de pouca tinta, segue morrendo de velhice antes dos trinta e de emboscada antes dos vinte.
É claro que o governo Lula, cujo grande investimento é o mercado externo, ou seja, a exportação pautada no agronegócio, não quer mexer nesse vespeiro. Tal como no tempo das caravelas, “exportar é a solução” – e quem defende a soberania alimentar e a produção de alimentos para o próprio povo, como os sem-terra, comete, por tabela, a terrível heresia de exigir uma ampla reforma agrária. Sob o credo palaciano, prevalece a política assistencialista escorada em programas como o “Fome Zero”, bem típica de quem empurra os problemas com a barriga (bastante obesa, por sinal…). Mas não venham dizer que o rei está barrigudo, que ele chora.
E assim segue a vida em Pindorama: somos obesos e somos famintos. Somos exuberantes e somos carentes. Há quem coma hambúrguer transgênico no McDonald’s, há quem saboreie um churrasquinho de gato no ponto de ônibus, há quem revire o lixo dos supermercados no fi nal do expediente. Soam os clarins: já não há mais desnutridos na casa-grande… Mas até quando a fome de justiça da senzala moderna irá contentar-se apenas com as vísceras do grande banquete?
Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da UERJ