O sentimento dos contrastes, que fecunda tão marcadamente o gênio dos povos meridionais da Europa, encontra-se igualmente no brasileiro, caracterizando-se pela capacidade de fazer suceder ao espetáculo lamentável das cenas da Paixão de Cristo, carregadas processionalmente durante a Quaresma, o enforcamento solene do Judas no Sábado de Aleluia. Compassiva justiça que serve de pretexto a um fogo de artifício queimado às dez horas da manhã, no momento da Aleluia, e que põe em polvorosa toda a população da cidade do Rio de Janeiro, entusiasmada por ver os pedaços inflamados desse apóstolo perverso espalhados pelo ar com a explosão das bombas e logo consumidos entre os vivas da multidão! Cena que se repete no mesmo instante em quase todas as casas da cidade.
É ao primeiro som de sino da capela imperial, anunciando a ressurreição do Cristo e ordenando o enforcamento do Judas, que esse duplo motivo de alegria se exprime a um tempo pelas detonações do fogo de artifício, as salvas da artilharia da marinha e dos fortes, os entusiásticos clamores do povo e o carrilhão de todas as igrejas da cidade. É preciso confessar que essa oportunidade de um contraste tão marcado, tirado de um mesmo objeto e que, terminando devotamente a Quaresma, apaga no espaço de dez minutos, de um modo igualmente engenhoso, a austeridade de suas formas, constitui o triunfo da imaginação num povo vivo e infinitamente impressionável.
Passando aos preparativos da cena, vemos a classe indigente, que se presta facilmente às ilusões, armar um Judas enchendo de palha uma roupa de homem a que se acrescenta uma máscara com um boné de lã para formar a cabeça; algumas bombas colocadas nas coxas, nos braços e na cabeça servem para deslocar o boneco no momento oportuno; uma árvore nova trazida da floresta faz as vezes de uma forca econômica, e o povo do bairro sente-se satisfeito. Observe-se que é de rigor fazerem-se esses preprarativos durante a noite, a fim de estar tudo pronto pela manhã.
Nos bairros comerciais a ilusão é mais completa, mas também mais dispendiosa. Os empregados se cotizam para mandar executar, pelo costureiro e fogueteiro reunidos, uma cena composta de várias peças grotescas, aumentando consideravelmente o divertimento sempre terminado com o enforcamento do Judas pelo Diabo, que serve de carrasco; nec plus ultra da ficção poética e da imitação dos movimentos do grupo das duas figuras, cujos balanços e oscilações são provocados e variados pelo arrebentar dos foguetes que os consomem finalmente, excitando a última bomba o mais ruidoso entusiasmo.
Graças a um concurso de circunstâncias, vimos ressurgir, na Quaresma, esse antigo divertimento caído em desuso há mais de vinte anos, ou melhor, proibido no Brasil desde a chegada da corte de Portugal, sempre desconfiante dos ajuntamentos populares. O temor é perfeitamente justificável ante a aproximação das novas Constituições liberais, pois três dias antes de minha partida do Rio de Janeiro, no Sábado de Aleluia de 1831, viu-se nas praças da cidade um simulacro do enforcamento de algumas personagens importantes do governo, como o ministro intendente-geral e o comandante das forças militares da polícia.
Posteriormente, a liberdade favoreceu o desenvolvimento aparatoso desse divertimento, que permaneceu, é preciso dizer, absolutamente estranho às alusões políticas e unicamente adstrito ao talento do fogueteiro e do costureiro. E seus progressos foram tão rápidos que, em 1828, época mais brilhante desse divertimento renascente, um edital da polícia induzia o fogueteiro à maior economia, a fim de prevenir prudentemente os incêndios, sobretudo nas pequenas ruas, e censurava ao mesmo tempo os cidadãos pelo abuso de despesas tão frívolas e vergonhosas para seu patriotismo. A censura deu resultado, e as despesas foram moderadas.
Quanto ao detalhe, as peças de que se compõe o fogo de artifício são pequenos grupos de figuras grotescas, engenhosamente fabricadas com simples folhas de papel coladas e coloridas, sempre fixadas a um pequeno tabuleiro girando horizontalmente. A figura indispensável, capital, é a do Judas, de blusa branca (pequeno dominó branco de capuz, usado pelos condenados); suspenso pelo pescoço a uma árvore e segurando uma bolsa supostamente cheia de dinheiro, tem no peito um cartaz quase sempre concebido nestes termos: “Eis um retrato de um miserável, supliciado por ter abandonado seu país e traído seu senhor”. Um diabo negro, o mais feio possível, a cavalo sobre os ombros da vítima, faz as vezes de carrasco e parece apertar com o peso de seu corpo o laço que estrangula o desgraçado.
Mais engenhoso ainda é o Diabo amarrado pela cintura, de modo a escorregar pela corda do Judas, e suspenso três ou quatro pés acima da cabeça do boneco por meio de uma outra corda, que se distende repentinamente em conseqüência do estouro de uma bomba e deixa cair o carrasco a cavalo em cima do pescoço da vítima. Esse efeito teatral, extraordinário, imita perfeitamente a pantomima do enforcamento, prolongada durante longo tempo, apresentando o espetáculo de um horrível grupo agitado sem cessar, entre turbilhões de fumaça, pela detonação dos petardos encerrados dentro dos dois manequins. Tudo termina afinal com uma última explosão, que lança para todos os lados mil parcelas inflamadas, logo reduzidas a cinza. [1]
Imagine-se essa obra prima do fogueteiro suspensa a quarenta ou cinquenta pés de altura a uma árvore colossal, cujos galhos guarnecidos de fitas a coroam vinte pés mais alto, e ter-se-á uma idéia dessa cena imponente, que provoca, não sem certa razão, os clamores de alegria do povo apinhado nas ruas e os aplausos dos espectadores dos balcões.
Nota:
1. Como o tema religioso consiste em fazer do diabo um perseguidor e criminoso, o dragão que acende o fogo é sempre uma serpente alada que pula do pedestal de um Lúcifer, suposto ordenador da execução do suplício e que também se abrasa no fim. Reproduzo dois grupos desses belos fogos de artifício, com essa diferença, entretanto, que no mais complicado dos dois, naquele em que o Diabo cai em cima do Judas, o costureiro se mostrou imitador mais fiel na representação do Diabo (carrasco negro todo acorrentado, como se vê nas execuções judiciárias).
(DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Parte III, prancha 21)