O ESPAÇO QUE NOS RESTA – Filosofia


 

“Eliminai, pouco a pouco, do vosso conceito de experiência de um corpo tudo que nele é empírico, a cor, a rugosidade ou maciesa, o peso, a própria impenetrabilidade; restará, por fim, o espaço que esse corpo (agora totalmente desaparecido) ocupava e que não podeis eliminar.” Introdução (B) do livro Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant, pág. 39, edição da Fundação Calouste Gulbenkian

Segundo alguns estudiosos de filosofia, analisar um texto filosófico é conseguir uma espécie de tradução um tanto mais clara que o próprio texto. Posto isso, tentarei ser, conforme argumentam estes estudiosos, mais claro que o próprio Kant.

Acredito, porém, que não seja fácil tal trabalho e que os estudiosos que defendem tal postura saberão compreender minhas enormes dificuldades para cumprir tal missão.

O trecho acima, da obra de Kant, começa afirmando que nós temos que eliminar, “pouco a pouco”, do nosso “conceito de experiência de um corpo tudo que é nele empírico”. Creio que nesse ponto surge a primeira pergunta: qual é o meu conceito de experiência, ou melhor, qual o nosso conceito de experiência, ou, melhor ainda, o que é experiência para Kant?

Para Kant, a experiência é o resultado dos dados sensoriais elaborados pelo intelecto, ou seja, Kant acredita que o conhecimento empírico implica uma participação intelectual nos dados sensoriais.

Kant entende que as sensações são a matéria bruta que, depois, será elaborada pelo entendimento e se tornará experiência. Para Kant, há dois conceitos de experiência. O primeiro é aquele entendido no sentido empirista; o segundo, aquele em que a experiência é um tipo de conhecimento que pressupõe um conhecimento sensível e outro a priori. A meu ver, é a junção desses dois conceitos que forma a experiência em Kant.

Podemos dizer, de outra forma, que o conhecimento a priori é aquele que não é empírico, ou seja, que não pode ser definido propositivamente. Porém, sabemos que a filosofia é, para Kant, reconhecimento dos limites e das capacidades da razão. A filosofia kantiana afirma que, assim como na física newtoniana, é possível, no pensamento filósofico, um conhecimento a priori, isto é, um conhecimento não-empírico.

Portanto, quando Kant fala em eliminar, “pouco a pouco”, o nosso “conceito de experiência”, ele está propondo um nova maneira de compreender as coisas. Uma revolução. Kant propõe que os conhecimentos a priori não devem ser fundados na experiência, por isso que devemos eliminar, “pouco a pouco”, nossos “conceitos de experiência” (cor, rugosidade, macieza, peso e impenetrabilidade), pois só assim chegaremos onde Kant quer: no conhecimento da existência da intuição pura e a priori de espaço.

Conforme o parágrafo que escolhemos da obra de Kant, se retirarmos tudo o que há de empírico num corpo sobrará, ao final desse strip tease, apenas o espaço que esse corpo ocupava. O espaço passa então à condição interna do conhecimento e de acesso aos fenômenos espaço-temporais: “Jamais será possível representar que não há espaço, anotou Kant, embora se possa muito bem pensar que nele não se encontre objeto algum. É ele, portanto, considerado a condição de possibilidade interna e subjetiva da sensibilidade”.1

Com isso Kant quer dizer que há, no conhecimento humano, a necessidade da existência desse “piso”, desse “solo” sobre o qual se constrói tudo aquilo que experimentamos. Dito de outra forma, ele se pergunta: “quais são as condições de nossa experiência?”2

Uma das condições para a nossa experiência é o espaço, sendo que esse espaço a priori da intuição pura de Kant, fundado exclusivamente na geometria euclidiana, não é empírico. A revolução feita por Kant está no fato dele ter descoberto que o espaço não é um conceito que se refere ao conteúdo do pensamento humano, mas às formas a priori de nossa capacidade de perceber e pensar, ou seja, “podemos conhecer o mundo somente nas formas de tempo e espaço que estão inscritas em nossa razão, anteriores a todo conhecimento”3. Esse espaço, para Kant, é absolutamente abstrato e a-histórico, válido igualmente para todas épocas, culturas e formas sociais. Ele é uma espécie de necessidade que não é a necessidade lógico-formal (para Kant, a necessidade é um critério que permite conhecer a aprioridade). Espaço, para ele, é a espacialidade pura e simples, sem nenhuma dimensão específica.

Espaço é uma forma pura da intuição. Na visão kantiana, portanto, o espaço é abstrato, sem conteúdo e sempre uniforme. É esse espaço que resta quando tiramos, como pede a frase de Kant, todos os conhecimentos empíricos de um corpo. Kant propõe o espaço como algo completamente independente do corpo que o ocupa. Esse espaço, para Kant, é uma intuição indivisível, única, que será sempre singular. Não podemos colocar, por exemplo, um espaço ao lado de outro espaço. O espaço, para Kant, será, portanto, sempre uma unidade e por isso ele não é um conceito, mas uma intuição. Para Kant, num conceito têm-se primeiro as partes e depois o todo. Na intuição não. Na intuição do espaço haverá sempre a intuição da espacialidade. Isso faz do espaço uma intuição pura a priori e independente do corpo que o ocupa, a qual servirá como base para toda a nossa experiência. Por isso Kant afirma, no trecho que escolhemos de sua obra, que nós não podemos eliminar o espaço absoluto da física newtoniana. O espaço que é a “arena geométrica onde fenômenos naturais ocorrem”.4

Segundo Merleau-Ponty, “Kant tentou traçar uma linha de demarcação rigorosa entre o espaço enquanto forma da experiência externa e as coisas dadas nessa experiência. Não se trata, bem entendido, de uma relação de continente a conteúdo, já que essa relação só existe entre objetos, nem mesmo de uma relação de inclusão lógica, como a que existe entre o indivíduo e a classe, já que o espaço é anterior às suas pretensas partes, que sempre são recortadas nele. O espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível”5.

Kant revolucionou a filosofia, pois exigiu que ela fizesse o estudo de sua própria capacidade de conhecer e com isso demonstrou a existência universal e necessária do espaço como intuição pura a priori. Posteriormente, o espaço a priori da intuição pura de Kant, fundado exclusivamente na geometria euclidiana, vai ser enriquecido pela intencionalidade da consciência de Husserl e, a partir das lições de Merleau-Ponty, por uma subjetividade que atua na percepção deste espaço 6.

 

1 – Matos, Olgária Chaim Feres; Jornal de Resenhas, 03.07.1995, pág. 2 2 – Arendt, Hannah; Folha de S.Paulo, 18.06.1996; caderno Mais! pág. 5-5 3 – Kurz, Robert; Folha de S.Paulo, 03.01.1999; caderno Mais!, pág. 5-3 4 – Gleiser, Marcelo; A Dança do Universo; Companhia da Letras, São Paulo, 1997; pág. 402 5 – Merleau-Ponty, Maurice; Fenomenologia da Percepção; Livraria Martins Fontes, 1945; págs. 327-8 6 – Duarte, Paulo Sérgio; Jornal de Resenhas; 13.02.1999, pág. 5

 

Por Renato Roschel

 

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