No duelo entre os ministros da Cultura, Gilberto Gil, e do Esporte, Orlando Silva Jr., sobrou para Guido Mantega, xerife do cofre federal. Em meio a uma guerra fiscal entre as duas pastas — a Cultura querendo manter intacta a mordida da Lei Rouanet, de 1991, que permite a empresas abaterem 4% do imposto devido em projetos culturais; e o Esporte, prestes a aprovar lei com o mesmo percentual —, Gil e Orlando defenderam uma saída matemática para atender aos interesses dos dois setores.
Depois de duas horas de reunião ontem no Palácio Gustavo Capanema, antiga sede do Ministério da Educação, no Rio, eles defenderam uma solução salomônica para dividir o dinheiro alheio. Querem mudar a Lei 9.532, de 1997, ampliando o teto de renúncia fiscal de 4% para 8%. Cada um teria sua própria alíquota de 4%. “Como está, com os dois correndo na mesma faixa, não dá. É uma canibalização de uma lei pela outra”, critica Gil, que se apresentou para o encontro escoltado por um grupo de ícones teatrais como Fernanda Montenegro, Marília Pêra e Ney Latorraca.
O lobby do outro lado levou o próprio presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Carlos Arthur Nuzman, encarregado dos Jogos Pan-Americanos de 2007 no Rio. “O esporte pleiteia o incentivo fiscal há 23 anos. Que cada um tenha os seus 4% e toque a sua vida da melhor maneira”, destacou Nuzman. A queda-de-braço se transfere hoje para Brasília, onde artistas, de um lado, e esportistas, do outro, vão pressionar senadores, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o próprio presidente Lula.
“Vontade política”
“Não é uma guerra. Não são batalhões que vão se encontrar numa praça e resolver na espada. Buscamos uma conciliação”, discursou Fernanda Montenegro. “Nossos 4% foram conseguidos a duras penas e não podem agora ser disputados a tapa com o esporte”, fez coro Marília Pêra. A palavra final será do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem Gil e Orlando Silva decidiram recorrer para convencer Mantega a dobrar o limite de renúncia fiscal hoje permitido. “É uma questão de vontade política do governo”, defendeu Gil, que quer a criação de um grupo interministerial para aprofundar o assunto. Aprovado na Câmara, o projeto do senador Wellington Salgado (PMDB-MG) que cria a Lei de Incentivo ao Esporte está prestes a ser votado no Senado.
Gil defende que o projeto seja retirado da pauta para que se abram as discussões, mas seu colega Orlando defende sua imediata aprovação. Outro ponto de divergência é que a nova lei permitirá que os investimentos em esportes tenham dedução de 100% em todas as atividades, enquanto a Lei Rouanet tem faixas diferenciadas, que vão de 30% a 100%. “É preciso que essa Lei do Esporte seja aperfeiçoada, até em função da racionalidade governamental”, defendeu Gil.
Renúncia fiscal
A tese dos artistas é de que, por ser mais sedutor para o grande público e permitir maior visibilidade, como a marca estampada na camiseta de atletas, o patrocínio ao esporte engoliria parte expressiva do que hoje é destinado à cultura. Como o limite de renúncia fiscal para uma empresa investir é hoje de 4%, eventos esportivos poderiam “roubar” os recursos de mecenas que hoje favorecem projetos culturais. Ou, como definiu Marília Pêra: “As empresas vão preferir patrocinar o Ronaldo, o Fenômeno, à Fernanda Montenegro”. Eduardo Barata, presidente da Associação de produtores Teatrais do Rio, lembra, inclusive, que a época em que as empresas menos investem em cultura é na Copa do Mundo.
A Comissão de Atletas Pan-Americanos e Olímpicos, que ontem fez um ato pela aprovação da lei em frente à estátua de Tiradentes, no Centro do Rio, informou que, na sua regulamentação, a lei vai privilegiar os esportes amadores aos atletas consagrados. “É uma lei que pode transformar profundamente a realidade do esporte brasileiro na medida em que vai diversificar as fontes de financiamento”, defendeu Orlando Silva. Segundo dados do Ministério da Cultura, 1.964 organizações patrocinam projetos culturais no país (7% do total), aquelas que declaram imposto sobre o lucro real. O setor cultural arrecada cerca de R$ 800 milhões dessa forma.
Curiosamente, o maior mecenas é o próprio governo, por meio de empresas públicas como Petrobras, Eletrobras e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 2005, a Petrobras investiu R$ 235 milhões no patrocínio de projetos culturais. Agora, esse bolo terá que ser dividido. Mas pode piorar. Outros setores já armam-se com seus exércitos de notáveis para defender leis próprias de incentivo na ciência e tecnologia, turismo e meio ambiente.