Não fosse a Guerra das Malvinas (1982), Patricio Salgado seria um perfeito argentino. Quer dizer, um perfeito argentino negro. Portanto, raríssimo.
Filho de argentina (branca) com brasileiro (negro), Salgado, 31, nasceu no Brasil e viveu em Buenos Aires parte de sua infância.
“Quando começou a Guerra das Malvinas [fracassada tentativa argentina de recuperar do Reino Unido o domínio das Ilhas Falkland], minha mãe achou que a situação lá tinha ficado muito surreal e decidiu voltar para o Brasil”, diz o hoje cineasta estreante.
Salgado resolveu contar em filme a experiência de ser considerado brasileiro na Argentina e argentino no Brasil e de habitar aqui o território quase exclusivamente branco da classe média alta, sendo negro. “A mãe de um amigo meu, especialista em pesquisa de opinião, uma vez me disse que eu era irrelevante estatisticamente.”
O comentário não tinha a intenção de ofender; era apenas a constatação de que seu perfil incomum não o habilita como representante de um grupo estatístico. Ele, no entanto, pensou: “Sou irrelevante, mas tenho muito a dizer”. Salgado resumiu seu discurso no projeto de documentário em curta-metragem “Negro e Argentino”, premiado no mês passado no concurso de produção de filmes da Petrobras, com R$ 30 mil em patrocínio.
A idéia é entrevistar “de surpresa” seus parentes. Quer falar sobre racismo, a partir da experiência familiar, e evitar discursos preparados sobre o “tema-tabu”. “Racismo é um tabu em qualquer parte, até na minha família, teoricamente bem resolvida.”
Ao remexer na memória familiar, Salgado acha que poderá se magoar “ou magoar alguém”. Mas está disposto ao risco. “É algo que vale a pena descobrir.”
O verbo descobrir é escolha de quem hoje não se julga detentor de uma “verdade” geral nem mesmo particular sobre o objeto de sua investigação -o racismo e a suposta intransponível rivalidade entre brasileiros e argentinos.
“Não sei bem como são as coisas. Mas quero provocar uma discussão diferente”, diz Salgado, que fica “incomodado com as pessoas falando de boca cheia tanto de negros quanto de argentinos, sem conhecer”. Na Argentina, nunca sentiu discriminação. Talvez apenas positivamente. “Lá, meu irmão e eu éramos muito favorecidos”, diz. No Brasil, foram muitas as “situações do cotidiano” que fizeram o diretor “pensar que estava sofrendo preconceito”. Assim como foram diversas as suas reações: “Já reagi como um lorde, já xinguei, já fiquei quieto”.
Exemplo de um dia em que Salgado e todos à sua volta calaram: na sala de aulas, um aluno perguntou à professora por que todos os negros eram pobres. “Caiu um silêncio sobre a sala”, diz Salgado. “E era por que eu estava lá”, foi o que pensou, ainda criança. Hoje, tem dúvidas da própria interpretação. “Talvez a professora não soubesse como responder.”
Folha de S. Paulo