Documentos do Ministério do Planejamento e vídeo no TCU mostram que companhias aéreas exigiram dispensa de retenção de tributos na venda de passagens sem licitação para mais de 600 órgãos federais, via cartão corporativo, meio para evitar atrasos de pagamentos do governo às aéreas.
Com o argumento de que a tecnologia gera economia e praticidade aos órgãos públicos, o governo federal espera aprovar, nos próximos meses, a Medida Provisória nº 822, que permite a continuidade da compra sem licitação de passagens aéreas por órgãos da administração pública federal até 2022. A atual MP prolonga o benefício concedido pela Medida Provisória 651, de Dilma Roussef, editada pouco antes da campanha de reeleição de 2014.
A MP 822 é alvo de polêmica por favorecer as companhias aéreas e por afirmar que a compra de passagens é direta, quando na verdade há um monopólio de agenciamento por uma empresa de tecnologia e que, portanto, não poderia atuar recebendo taxas por passagens emitidas.
E as inconsistências não param por aí. Em três anos a Associação Brasileira de Agencias de Viagens do Distrito Federal reuniu cerca de quatro gigabytes de documentos que contrariam os argumentos do governo para a aprovação da MP, entre eles de que a compra de passagens aéreas via cartão corporativo traria economia de 30%.
As provas também dão conta de que as companhias aéreas interferiram na redação do edital de credenciamento para elas próprias serem contratadas sem licitação.
Entre os documentos levantados estão: o processo de contratação da intermediária empresa de tecnologia, listas de presença dos presidentes das companhias aéreas em reuniões fechadas no Ministério do Planejamento, atas incluindo o pedido do cartão ao governo, lobby confirmado em vídeo, processos de pagamentos sem aferição dos preços de mercado de passagens e sem certidões de regularidade fiscal, além de planilhas oficiais que desmentem a economicidade alegada.
ENTENDA:
Em 2014, a Portaria 227 instituiu a compra de bilhetes aéreos por órgãos federais através de uma forma alegada como direta, ou seja, sem licitação por intermédio das agências de viagens. Mas faltava o cartão exigido pelas companhias aéreas para evitar a “inadimplência”, fazendo surgir a demanda pela Medida Provisória 651/2014, cujos benefícios se extinguiram em 2017. Agora a nova Medida Provisória nº 822 de 2018 ressuscita aquelas regras.
COMPRA DIVULGADA COMO DIRETA POSSUI INTERMEDIÁRIA
O pagamento contínuo via cartão corporativo para as companhias aéreas é algo único no Brasil, privilégio que nenhum fornecedor possui e “exigência” das companhias aéreas para não sofrerem “inadimplência”, o que caracteriza favorecimento pessoal.
Com o cartão, a compra de bilhetes é apresentada pelo governo como direta, mas segundo o advogado Jonas Lima, da ABAV-DF, isso não é verdade, pois a empresa de tecnologia Envision recebe pelas passagens, como uma agência. E sua última prorrogação contratual foi de R$ 4,7 milhões. “Pela Lei nº 12.974/2014 a intermediação remunerada das passagens é atividade privativa de agência, sendo ilícito que empresa de tecnologia faça isso, havendo ainda direcionamento e restrição, pois as agências disponibilizam sistemas de autoatendimento para emissões online, em tempo real, sem custos adicionais”, explica.
Segundo o advogado, isso retira a credibilidade dos argumentos de modernidade, inovação e ganhos operacionais, já que o governo apenas paga à empresa de TI e exclui as agências, que por lei vendem as mesmas passagens e também disponibilizam sistemas de autoatendimento corporativo.
FALSA ECONOMIA
Desde 2014 o Ministério do Planejamento alegava economia da “compra direta” de cerca de 30%, mas os dados abertos mostram que em três anos o valor médio da passagem sempre foi crescendo. Dados de final de 2017 comprovam que na maioria dos bilhetes o desconto foi zerado e que a média geral ficou em 2%.
“Além de prejuízos diversos com cancelamentos, que chegam a 9% das passagens, e prejuízos em milhares de taxas de bagagens mais caras no momento do embarque, se confrontarmos este percentual ao benefício do diferimento tributário para as companhias de 7,05%, há prejuízo. Sendo que depois os órgãos não pedem comprovantes de quitação dos tributos devidos”, diz Lima.
Processos de pagamento dos cartões de vários órgãos trazem planilhas geradas pela empresa Envision, com tarifas das próprias companhias aéreas que não possuem qualquer tipo de conferência com as tarifas do mercado. “Sem registro nos processos de que as tarifas apontadas para descontos eram, realmente, as mais baratas no mercado, acabou se afastando a fiscalização obrigatória e suprimindo-se 100% da transparência”, afirma o advogado.
Dessa forma, somente em 2017 de mais de R$ 290 milhões não teve fiscalização externa.
DISPENSA DE TRIBUTOS NA FONTE: BENEFÍCIO FISCAL ÀS COMPANHIAS
Um mês após a Portaria 227 e um dia antes do credenciamento das companhias no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, foi assinada a MP 651, de 09/07/2014, concedendo o benefício de dispensa de retenção de tributos na fonte para as companhias até 31/12/2017.
O benefício fiscal evitou a arrecadação imediata de 7,05% de tributos o que contabiliza de 2014 a 2017 aproximadamente R$ 43 milhões de custo tributário. “O benefício funcionou como um empréstimo ao fluxo de caixa para as companhias aéreas, com dinheiro público, sem custos e com ganhos financeiros”, afirma Jonas Lima.
“Ninguém pode ser agraciado com MP sob encomenda. É inconstitucional por violar o princípio da impessoalidade do artigo 37 da Constituição Federal e por desigualar contribuintes das mesmas passagens aéreas (agências e companhias), pois o artigo 150 da mesma Constituição veda esse tratamento desigual e privilegiado”, complementa.
FORMATO DA MP LIVRA COMPANHIAS DE APRESENTAREM CERTIDÕES NEGATIVAS
A MP 651/2014, repetida agora com a 822/2018, dispensou as companhias aéreas de apresentar certidões negativas para atuarem como fornecedores de passagens.
Isso acontece porque o cartão do Banco do Brasil serve de meio de pagamento dos bilhetes e o seu CNPJ oculta a irregularidade tributária das companhias aéreas na Receita Federal.
Isso explica também porque certidões das aéreas não constam nos processos de pagamento. “As companhias nunca foram multadas. Até porque o edital, cuja redação contou com a participação das aéreas, teve excluída a multa, que é obrigatória por lei. Assim, as companhias continuam fornecendo serviços mesmo com contratos irregulares enquanto os fornecedores comuns teriam seus contratos rapidamente rescindidos nesta situação”, ressalta Jonas.
ARTICULAÇÕES POLÍTICAS
O processo original de 2014, no Ministério do Planejamento, classificado como de “articulação e política”, passou várias vezes pelo Gabinete da então Ministra Miriam Belchior, tendo surgido após listas de presença de final de 2013 com visitas não públicas dos Presidentes das companhias AZUL (David Neeleman), GOL (Paulo Sérgio Kakinoff), AVIANCA (José Efromovick) e TAM (Claudia Sender) ao Ministério. Reuniões com diretores e técnicos constam em ata, até que surgiram a Portaria 227 e a MP 651, de 2014, quando o ex-Ministro Dyogo Oliveira era ainda Secretário Executivo do Ministério.
Em visível auto-preservação, pela sua participação na gestão de Dilma, um dos últimos atos de Dyogo – agora como Ministro do Presidente Michel Temer – foi levar ao Ministro da Fazenda Henrique Meirelles, em 2018, o pedido de nova medida provisória ressuscitando os benefícios fiscais.
Detalhe é que o Ministro Henrique Meirelles, mesmo tendo histórico recente de acionista e integrante do Conselho de Administração da AZUL e notificado da reiterada irregularidade fiscal das companhias aéreas e da falta de fiscalização dos tributos, ainda assim, deu aval e assinou junto com Temer a MP 822, que está para aprovação no Congresso.
“Condutas de favorecimento a interesses privados e ocultação de informações ao Congresso Nacional, inclusive da intermediação de passagens por empresa de tecnologia, com afirmação de suposta compra direta e sem informar os diversos prejuízos fiscais e financeiros do projeto, além da falta de postura de barrar a situação, no Ministério da Fazenda, com o advento da MP 822, de 1º de março de 2018, tem potencial de caracterizar crimes de prevaricação e falsidade ideológica em documentos públicos, para o nascimento da nova medida provisória”, conclui o advogado Jonas Lima.
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