Falar de ‘arte popular’ é um grande problema. Exige, a princípio, definir ‘arte’ e definir ‘popular’, e um Caderno B inteiro, de ponta a ponta, não daria conta do recado. São duas exposições, uma de Manuel Eudócio, no Museu do Folclore, no Catete; e outra da Família Graciano, na Pé de Boi, em Laranjeiras. Mas as linhas de atuação de ambas as mostras são tão emboladas que é um custo separar a identidade de cada um. Já a nossa, a brasileira, fica mais fácil depois de vê-los.
Muito a grosso modo, pode-se dizer que há a arte popular de repetição e perpetuação e a de criação.
Se repetição e arte, quando perto uma da outra, levantam logo a suspeição de comércio, dinheiro e outras coisas vis, isso já não acontece quando o adjetivo ‘popular’ também está por perto. A arte popular tem esta função de preservação de uma cultura regional. É bom que repita. Significa que resiste. Neste aspecto, Manuel Eudócio é mais de repetição. A Família Graciano é mais de criação.
Gostei mais da Família Graciano. E aqui vou me dividir em duas outra vez. É que tem a parte da forma, da escultura, e tem a pintura. Da tinta não usada como um enfeite, um acabamento. Em Juazeiro, onde mora a Família Graciano, não existe tela. Os bonecos e cenas, então, podem ser esculturas pintadas mas também podem ser pinturas em 3D. No Frango, de Cícero, um dos dois filhos do patriarca Manuel Graciano, isso fica bem claro. É uma pincelada solta, que compõe uma superfície com um tempo não estático, mas vibrante. Diferente da padronagem ‘caprichada’ de um ‘bom acabamento’.
As formas na Família Graciano variam um pouco, embora mantenham um mesmo pathos. São oblongas, sempre, e também não estáticas, mas em um movimento e em um desequilíbrio constante. As de Manuel são mais limpas, as do neto Edinaldo menos. Riem-se todos – bichos e bonecos – de um riso nervoso, de agressividade disfarçada.
Manuel Eudócio vai mais para a narrativa. Enquanto a Família Graciano conta a história de uma dureza, de uma força de resistência contra terrores, e não necessariamente episódios e fábulas, Manuel Eudócio vai para o que todo mundo conhece: o pau-de-arara, o casamento, a festa religiosa. Em um texto do catálogo, ele conta como começou: ‘Tentei fazer e fiz. Vendi cinco bonecos na feira e achei que o negócio era bom. Ia dar resultado’. As pessoas compram aquilo em que se reconhecem.
Há mais uma diferença, que talvez explique as outras. A Família Graciano trabalha com troncos de madeira, que vai limpando até chegar onde quer. Ou seja, é uma arte de subtração. Manuel Eudócio trabalha com o barro massapé do Rio Ipojuca, do Alto do Moura (Pernambuco). É uma arte de acréscimo.
Quando a gente começa a trabalhar no que gosta é difícil parar. A arte de subtração ficará sempre mais limpa, mais adequada a um gosto urbano contemporâneo, do que a de acréscimo. A de acréscimo documenta sempre mais o seu referente.
Mas entre explicitar novos terrores, repetir velhos confortos, limpar o que precisa, acrescentar o que se tem vontade – pintando, esculpindo e mais o que der – vamos indo bastante bem, obrigado.
Galeria Pé de Boi – Rua Ipiranga, 55 Laranjeiras. 2ª a 6ª, das 9h às 20h; e sáb., das 9h às 13h.
Museu do Folclore – Rua do Catete, 179, Catete. 3ª a 6ª, das 11h às 18h; sáb. e dom., das 15h às 18h.