Miguel Sanches Neto 2

Entrevista: Entrevistão
(Mario Mello, Curitiba. A revolução do voto, 15 de setembro de 2004)

     

Quem é Miguel Sanches Neto?

     

É um conjunto de seres vivendo em épocas diferentes. É o ex-menino do interior, criado descalço nas ruas sem asfalto. É o órfão vivendo na família do padrasto. É o jovem que morou em colégio interno e também um outro que tentou ser agricultor. É um rapaz triste que bebia mais do que o aconselhável. Mas também o adolescente rodeado de amigos. O estudante de Letras que só se dedicava à literatura. O homem que se doutorou em Teoria Literária, o leitor profissional, o poeta meio constrangido, o contista sempre atento ao cotidiano, o romancista por vocação mais profunda, o crítico pela necessidade de entender, o cronista encantado com o passado e o presente. A soma disso tudo cria um ser meio estranho, feito de pedaços, desencontrado com a própria história, com uma consciência muito aguda das contradições de um país esfacelado como o nosso.

 

     

Como você analisaria o atual estágio da literatura paranaense?

     

Eu faço parte da geração ascendente – aquela que está deixando os limites do Paraná e conquistando espaço nacional, com um pé já no exterior. Minha geração sucede a dos escritores que ganharam projeção nos anos 80 e se afirmaram na década seguinte. A nossa marca é que vivemos a ditadura de forma mais contemplativa do que participativa, pois éramos muito jovens. Para nós, a ditadura militar tem um sentido mais vago – mas não menos forte. Dentro desta geração, eu me sinto herdeiro de uma linguagem clara, de um texto ágil, de um olhar obcecado pelas relações familiares e pelas contradições entre o mundo rural e o urbano. É difícil falar sobre a gente, mas posso dizer que tenho tentado ser digno da tradição que me antecedeu, que vai de um Dalton Trevisan e um Wilson Martins a um Domingos Pellegrini, por exemplo.

 

     

Você fala muito de Peabiru em seus textos. Existe algo de mal resolvido entre o escritor e a cidade?

     

Existe sempre algo mal resolvido entre o escritor e o mundo onde ele se formou. Eu fui um menino pobre, depois um adolescente tímido e agressivo, em conflito com a família. Eu me sentia sufocado por Peabiru, porque as chances de ser feliz lá eram muito pequenas. Por outro lado, eu me sinto preso a todo aquele mundo. Se houvesse a oportunidade de escolher como seria meu paraíso pessoal, se eu pudesse criar minha Pasárgada, ela teria a forma da Peabiru dos anos 70. A cidade antes me magoava por existir de uma forma que me negava. Hoje ela me magoa por não mais existir como eu me lembro dela. Tive que perder a cidade para ser digno dela. É como largar de uma paixão que não nos compreende do jeito que esperamos ser compreendidos para poder amá-la de longe. Este longe para mim é a memória.

 

     

Você acha que os “caminhos do Peabiru” podem levar alguém para algum lugar?

     

Escrevi em um texto que os caminhos de Peabiru não levam a lugar nenhum. Esta afirmação é dialética. Não existe mais minha cidade da infância/adolescência, então o caminho perdeu sua função de me levar de volta. Por outro lado, a cidade está em mim, então o caminho é percorrido como uma passagem interior. Ele me leva ao homem que sou. É uma estrada perigosa, cheia de sons e fúrias.

 

     

Existe realmente o projeto de se fazer um filme de seu livro “Chove sobre minha infância”?

     

Sim, existe não só o projeto, mas até roteiro. Tudo está nas mãos do Fernando Severo. O problema do filme no Brasil é o patrocínio. Este é um filme barato, mas é preciso levantar no mínimo um milhão de reais. O projeto ficou em décimo-terceiro lugar na seleção da Petrobrás para filmes de baixo-orçamento, foram contemplados os doze primeiros. Eu não atuo no projeto do filme, isso é com o pessoal do Severo. Precisa de uma habilidade que eu não tenho. Mas agora mesmo um grupo de Belo Horizonte quer fazer um curta a partir do conto “O herdeiro”. Minha literatura é muito cinematográfica, todos dizem que os contos são pequenos roteiros de filme. Não poderia ser de outra forma, meu contato com o mundo da arte foi pela televisão. Nós compramos a primeira tevê em 1977, eu tinha 12 anos, foi quando comecei a me afastar do universo rural.

 

     

E a nossa “democracia” na sua opinião, vai bem ou vai mal?

     

Democracia é conflito, então ela sempre será crise, disputa, luta. Não podemos esperar calmaria. O que mais me incomoda nela é a incapacidade que a maioria dos grupos tem de enxergar o outro. As pessoas olham só um lado das coisas, e tudo, até mesmo um escritor criado em Peabiru, tem vários lados. Esta viseira nem é ideológica, é mais pessoal, fruto de vaidades e de interesses. Democracia plena é quando a classe política e a sociedade conseguem ver o outro de vários ângulos, para não ter uma visão estereotipada. Poderíamos dizer que ainda estamos em uma fase selvagem de democracia, praticando a caça predatória do inimigo, seja ele quem for. A fase civilizada da democracia chegará quando o outro receber nossa atenção e admiração, mesmo quando não concordarmos com ele.

 

 

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