Leitura e políticas públicas: uma reflexão para a cidadania

 

 

 

 

 

Sou um leitor compulsivo. Se não, nem teria me preocupado em escrever isto. De Marx a Matthew Battle, de Balzac a Lawrence Block, leio literatura (da que consideram “alta” e também policiais e “best-sellers”), ensaios de todo tipo e para todos os fins. Livros de cozinha – que leio, e não apenas uso. Dicionários – meu pai me obrigava (o verbo é esse mesmo) a aprender dez novas palavras por dia. Acabei gostando e hoje é quase um hábito.

 

Não sei se a leitura me tornou uma pessoa melhor. Até porque esses juízos de valores não combinam com minha formação de antropólogo. Certamente me ajudou – e muito – a construir uma compreensão do mundo. Como diria Ortega y Gasset, fez que eu me situasse mais precisamente nas minhas circunstâncias.

 

Com tudo isso, acabei por desenvolver a arrogância do “bom” leitor diante do “lixo” que os outros liam. Como é possível alguém ler livros de auto-ajuda? – eu me perguntava. Ou gostar do Paulo Coelho?

 

O envolvimento com políticas públicas colocou minhocas na minha cabeça. Perguntei-me: com que direito vou me arrogar a dizer a uma pessoa que lê um livro do qual não gosto que aquele livro é ruim? Não estou aqui como crítico literário nem catequista. Se estou envolvido em fazer com que livros possam ser acessíveis para a população, como posso me arrogar a determinar o que pode ou não pode estar numa biblioteca? Em um determinado momento percebi o caráter autoritário da imposição da “boa” leitura. O sábio escolhe os acervos das bibliotecas, e dane-se o que seus freqüentadores querem ler. A cascata de “especialistas” começou a me cansar. Uma vez uma professora, “leituróloga”, me disse que seu filho (de doze anos) aprendia muito mais lendo Dostoievski do que nos livros escolares. Realmente não sei se o menino virou um ególatra perseguido pelo remorso ou não. Mas acho que não aprendeu a regra de três lendo os “Irmãos Karamazov”, e duvido também que tenha realmente aprendido a se movimentar numa biblioteca.

 

De certa forma o que está escrito abaixo é uma tentativa de racionalizar essas experiências. Talvez seja um projeto de pesquisa. Ou uma simples provocação. Mas, como não quero guardar essas coisas, prefiro compartilhá-las. Aí estão.

 

1. Uma primeira e fundamental questão: as políticas públicas não surgem para promover mudanças. Aparecem e se desenvolvem como resultado do surgimento de demandas sociais. Estas, por sua vez, decorrem de um processo histórico específico.

 

2. O entendimento de que o gerador de demandas por políticas públicas é o desenvolvimento das contradições históricas de uma sociedade determinada é importante para que se afaste a ilusão de que esse gerador é (ou são) a(s) teoria(s). Estas, mais adiante, vão proporcionar o recheio ideológico para a ação de diferentes agentes sociais envolvidos na satisfação dessas demandas, que, muitas vezes, passam a acreditar que foram suas “idéias” que geraram o movimento. Assim, por exemplo, o que gera políticas públicas de seguridade social não é o “ideal” do bem-estar social, e sim o aumento do custo e a organização dos gastos com a manutenção dos idosos em uma sociedade onde a família se nucleariza cada vez mais e deixa de constituir-se em rede eficaz de apoio para o sustento da velhice; as políticas públicas de saúde decorrem da brutal elevação dos custos humanos e sociais decorrentes da urbanização e da disciplina para o trabalho fabril; as políticas de educação não provêm das boas intenções dos “catequistas” da ilustração[1], e sim da necessidade do moderno capitalismo de ter mão de obra mais capacitada. E a demanda por políticas públicas de leitura decorre do aumento da complexidade do processo educativo.

 

3. O objetivo de uma política pública de leitura não é o de formar “cidadãos leitores”, mas sim, simplesmente, leitores. Ou seja, cidadãos (trabalhadores) capazes de desenvolver a capacidade de compreender o escrito e se expressar dessa forma, em níveis relativamente complexos. A busca de formar “cidadãos leitores” já é decorrente de uma disputa ideológica entre pedagogos, “leiturólogos” e filósofos da educação. Essa disputa – legítima quando se dá nesse momento – se instala imediatamente com a discussão dos diferentes métodos usados para se formar leitores. Partindo da constatação que o ensino tradicional não garantia a aquisição dessa habilidade leitora, imediatamente se inaugura um campo[2] de disputa: qual o método mais eficiente para formar leitores e, principalmente, qual o objetivo de formar leitores? A disputa se instala como se a questão se fundasse nas diferentes abordagens do tema dada por diferentes pensadores, e não na demanda social fruto da explicitação de tensões decorrentes do desenvolvimento histórico. É como se da discussão sobre políticas públicas de saúde se derivasse uma discussão entre alopatia e homeopatia como técnicas de diagnóstico. O que importa para que políticas públicas de saúde sejam bem-sucedidas não é isso. É garantir acesso por parte da população aos serviços de saúde; práticas de saneamento e serviços públicos que diminuam a incidência de doenças; condições para que os médicos trabalhem, façam seus diagnósticos e tratem dos doentes. Para isso os médicos têm que ser bem formados, dispor dos equipamentos necessários para fazer seu trabalho e, finalmente, que se instituam medidas de avaliação do sucesso ou fracasso das políticas aplicadas. Sucesso ou fracasso que se medirá por estatísticas de mortalidade, incidência de enfermidades, tempo de permanência em hospitais, índices de cura, etc. Ou seja, no êxito da cadeia que garante acesso por parte da população, que esta seja atendida por profissionais adequadamente treinados, que os meios de diagnóstico e cura estejam disponíveis e que haja um processo de avaliação post hoc sobre o sucesso das práticas aplicadas. Obviamente existe a disputa entre os médicos – e dentro da ciência da medicina – para que se desenvolvam melhores técnicas de diagnóstico, atendimento e possibilidades de cura. Mas essa é uma discussão que se dá lá na base, entre os profissionais do sistema, e não é um componente estrutural do sistema de saúde pública.

 

4. Quais seriam, entretanto, os elementos constitutivos de uma política pública de incentivo à leitura?

 

5. Dizer que esse objetivo é o de formar “cidadãos leitores” encobre uma boa dose de “wishful thinking”. Para o Estado não se trata disso, e sim de formar leitores, capazes do entendimento e compreensão do texto escrito e de se comunicarem da mesma forma. Isto se configura atualmente como um direito dos cidadãos. Esse é o “ponto de chegada” derivado das pressões sociais e é daí que decorre a formulação e a implementação das políticas públicas de estímulo à leitura. Sejamos claros: ao Estado, mesmo ao mais democrático, não importa formar “cidadãos leitores”, capazes de, através da leitura, “ler o mundo”, ou desenvolver suas “distintas capacidades de leitura do mundo”[3]. Isso pode acontecer – e felizmente acontece – como resultado do desenvolvimento da capacidade leitora, mas está longe de ser o motor da política pública. Pode acontecer – e acontece – como resultado das disputas e contradições da vida social, mas não é decorrente do fato de haver – ou não – uma política de formação de “cidadãos leitores”. O que é fundamental para o Estado é garantir aos cidadãos as condições para que possam se tornar leitores, e leitores segundo suas necessidades e desejos, e não segundo o que determine esta ou aquela teoria sobre a leitura.

 

6. As políticas públicas de incentivo à leitura, portanto, não se destinam a formar determinados “tipos” de leitores. Querem simplesmente formar leitores. Seja de manuais técnicos ou de alta literatura – e essa escolha independe da e transcende os objetivos da política de fomento à leitura. Disso decorre também o necessário abandono da dicotomia do “ler por prazer” e ler “por necessidade”. Da mesma forma, o “ler por hábito”. Sem falar na idealizada proposta de que a leitura se destina a “interpretar” o mundo.  A leitura é tão somente um instrumento – ainda que muito poderoso – de interação com todos os demais componentes/condicionantes da vida social. Ao Estado – através de políticas públicas de incentivo à leitura – cabe tão somente permitir que essas interações sejam as mais fluidas possíveis, e concorrentes com outros fatores históricos da vida social.

 

16. Ao Estado cabe, basicamente, tornar acessível o livro[4]. Nas salas de aula, nas bibliotecas públicas, nos mais diferentes ambientes. Cabe estimular todas as iniciativas voltadas a despertar o interesse pela leitura. Em seguida, precisa avaliar os resultados em termos específicos: compreensão dos textos e capacidade de expressão através da escrita. A partir da avaliação feita com esses critérios, poderá estimular aquelas ações que resultem mais eficazes, difundir essas experiências e alertar para a ineficácia de outras.

 

17. Entretanto, ao fazer isso, o Estado abre o espaço para disputas entre as diferentes concepções de leitura, assim como para os processos de formação de agentes mediadores de leitura. Afinal, as ações da política têm, na sua ponta de execução, seres humanos com sua trajetória e formação pessoal, inscritos em condições sociais específicas e que têm idéias e concepções próprias. Um Estado democrático não pode impor esta ou aquela concepção de leitura. Tem, efetivamente, “deixar que mil flores cresçam” e deixar fluir a disputa de idéias. Tem que formar mediadores de leitura e capacitar professores para que ensinem os alunos como é possível utilizar os livros para as mais diferentes possibilidades de fruição e aproveitamento. É preciso, sim, ensinar a fazer pesquisa bibliográfica, a se movimentar em uma biblioteca, encontrar o que se busca na miríade de ofertas de livros. Familiarizar estudantes e a população em geral com o livro. Mas o resultado disso não pode ser predeterminado nem o meio de fazê-lo imposto de cima para baixo. Alguns desenvolverão o gosto pela leitura, lerão por prazer e encontrarão esse prazer mesmo nas leituras mais áridas de aquisição de conhecimentos e informações. Outros, não. Esse resultado não é previsível em qualquer política de fomento à leitura, e o que pode ser medido é a capacidade de compreensão e expressão escrita. Da mesma forma como o mais perfeito sistema público de saúde não impede que se adoeça nem que eventualmente não haja cura para a doença. O que é fundamental é que se abra e se consolide o campo de acesso onde a cidadania possa exercer seus direitos, seja à educação e à leitura, seja à saúde, à seguridade social, etc.

 

——————————————————————————–

 

[1] Em um continente pródigo em ditadores “ilustrados” não deixa de ser sarcástico pensar que a educação pública seria um subproduto da ideologia do século das luzes. “El Otoño del Patriarca” está aí para mostrar o quanto amava a educação toda a estirpe de ilustrados déspotas que abunda em nossas histórias…

 

[2] Na acepção dada por Pierre Bourdieu ao termo.

 

[3] Esse “wishful thinking” de muitos militantes de programas de incentivo à leitura encobre também a ilusão de que a condição de leitor é o caminho para que nos tornemos (individual e socialmente) melhores cidadãos. Hitler, Mussolini e Stálin eram leitores, assim como a longa linhagem de déspotas que infestaram a nossa história. A ilustração fez tão somente com que pudessem exacerbar o que sua posição de classe, circunstâncias políticas e pessoais, inclinação e inserção política colocavam na sua pauta de ações. A “leitura do mundo” deles derivou não de sua condição de leitores, e sim de sua condição de classe e do momento histórico em que viviam.

 

[4] E, certamente, todos os produtos culturais. A Internet e o acesso à rede mundial já fazem parte, hoje, da necessidade de formar leitores. As políticas de “inclusão digital” caminha pari passu com a necessidade de políticas públicas de fomento à leitura. Ergo, tão importante quanto financiar a produção de produtos culturais (ou até mais importante, digo eu) é garantir o acesso dos cidadãos a esses produtos. A possibilidade de acesso abre espaço para as escolhas individuais e outras disputas nos campos da apreciação do objeto artístico.

 

Felipe Lindoso, antropólogo, pesquisador de políticas públicas da cultura, e consultor de organismos internacionais, é autor de “O Brasil pode ser um país de leitores?” (Ed. Summus, 2004).

 

ArteCidadania.org.br

 

Compartilhar: