Seitenfus: ‘Minoria alemã foi alvo da propaganda nazista’
Nacionalismo brasileiro era incompatível com a agressiva política nazista. Guerra acelerou queda de Vargas, bem como a industrialização e americanização do país, diz professor.
Em entrevista à DW-WORLD, o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (RS) Ricardo Seitenfus fala sobre o significado para o Brasil do final da Segunda Guerra Mundial. Autor do livro O Brasil vai à Guerra, ele aborda também a incompatibilidade entre o nacionalismo brasileiro e a política agressiva do nazismo, bem como as perspectivas de Brasil e Alemanha obterem mandatos no Conselho de Segurança da ONU, cuja reforma considera um ponto final do conflito ocorrido entre 1939 e 1945.
DW-WORLD: O que significou e/ou ainda significa o dia 8 de maio de 1945 para o Brasil?
Ricardo Seitenfus: O Brasil foi o único país latino-americano a participar efetivamente dos combates da Segunda Guerra Mundial ao enviar, em 1944, 26 mil soldados para o front italiano. Além disso, foi o primeiro país da região a romper as relações diplomáticas e comerciais com o Eixo (janeiro de 1942) e muito cedo lhe declarou guerra (agosto de 1942). Tal evolução colocou o Brasil no campo dos vencedores da guerra – o que levou o país a aspirar, sem sucesso em razão da oposição soviética, a integrar como membro permanente o Conselho de Segurança da ONU –, e o epílogo da guerra provocou profundas mudanças internas e externas para o país. Eis as principais:
- Tendo conquistado junto aos Estados Unidos apoio técnico e financeiro para o lançamento da indústria pesada – caso de Volta Redonda –, a economia do Brasil ingressa num ciclo de extraordinária industrialização que contrasta com o país agrário e atrasado que o caracterizava até então. Um pólo industrial se estabelece no triângulo São Paulo/Rio de Janeiro/Minas Gerais, que muda a face do país. Moderniza-o, provoca uma dupla migração campo/cidade – com elevados índices de urbanização – e Nordeste/Sul, provocando um desequilíbrio de desenvolvimento entre as regiões brasileiras. Surge uma classe média urbana que ditará os valores culturais e decidirá os rumos da política nacional. O desenvolvimento econômico brasileiro será estreitamente vinculado ao capitalismo internacional, sendo o país – pela primeira vez em sua história – integrado ao sistema internacional. A Alemanha Ocidental será, nessa fase, um dos principais parceiros do país.
- A mais imediata conseqüência política interna do final da guerra consiste no escancaramento da insustentável situação do presidente Getúlio Vargas – ditador desde o autogolpe de novembro de 1937 –, que é expulso do poder em 1945 e substituído, por meio de eleições, pelo general Eurico Gaspar Dutra. Tem início, então, um ciclo de aprendizado da democracia que é interrompido com o golpe militar de março de 1964 e retomado em 1990.
- A vitória aliada significa igualmente o fortalecimento e o aprofundamento do papel dos militares na política brasileira. Apesar das hesitações manifestadas pelos militares até dezembro de 1941, a partir de então eles desfrutam de um sentimento nacional que percebe as Forças Armadas como depositárias fiéis da Nação.
- As relações exteriores brasileiras conhecem uma profunda “americanização”, tal como ocorreu na segunda metade do século 19. Washington encontra no Brasil um aliado confiável e o Brasil, por sua vez, não consegue perceber seus interesses no plano internacional sem referir-se aos Estados Unidos. Sai fortalecida do episódio, portanto, a influência – cultural, financeira, comercial, política, tecnológica – dos Estados Unidos no Brasil, a qual não encontra – como sucedeu na década de 1930 – nenhum obstáculo ou concorrente.
No livro O Brasil vai à Guerra, o Sr. analisa o envolvimento brasileiro no segundo conflito mundial, mostrando como os países periféricos penam para se enquadrar, quando os grandes resolvem brigar. Qual foi o custo/benefício do Brasil ao praticar, no período da guerra, uma política externa mais parecida com um jogo de pôquer? O Brasil foi obrigado a entrar no conflito ou foi porque assim o desejou?
O Brasil foi um ator marginal ao drama da Segunda Guerra Mundial. Ele não possuía nenhum interesse aparente no conflito. Contudo, quando a guerra deixa de ser somente européia e se transforma em hecatombe mundial, nenhum país, por mais marginal que fosse, deixa de ser afetado. Neste sentido, o Brasil é conduzido à guerra muito mais pelas circunstâncias do que por um desejo belicoso. Em razão de sua extensão territorial (8,5 milhões de km²), de suas riquezas naturais, em particular os produtos fundamentais em tempos de guerra, sua localização estratégica que domina uma larga face do Atlântico Sul e a localização em seu solo de importantes núcleos de colonização oriunda dos países do Eixo – mormente alemães –, o Brasil logo se vê confrontado com os dilemas dos anos 1930 e da luta entre democracia e totalitarismo.
Em seu estudo, o Sr. confirma algumas interpretações da historiografia oficial sobre o vai-e-vem do Brasil na Segunda Guerra (a questão da Usina Siderúrgica de Volta Redonda, o oportunismo de Vargas, a simpatia de alguns integrantes de seu governo pela Alemanha etc). Que outros aspectos ainda pouco conhecidos influenciaram as posições assumidas pelo Brasil durante o conflito?
A principal contribuição inovadora de meu estudo à historiografia da Segunda Guerra Mundial consiste na afirmação consolidada de que o Brasil rompe com a Alemanha no início de 1938 em razão da incompatibilidade entre o nacionalismo brasileiro e a política agressiva do NSDAP (Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores) no Brasil junto à oposição a Vargas e sobretudo sua tentativa de manipular e “nazificar” a minoria alemã localizada essencialmente no Sul do país. A estratégia alemã de submissão da minoria alemã à ideologia nazista e a participação de Berlim na tentativa de putsch da Ação Integralista Brasileira contra Vargas, em maio de 1938, conduz o ditador a romper com a Alemanha. Certamente muitas peripécias ocorrerão a partir do início da guerra em setembro de 1939. Contudo, há uma consciência progressivamente majoritária dentro do governo brasileiro sobre a contradição em fortalecer o nacionalismo – força indispensável para a criação da nação brasileira – e os esforços feitos pela Alemanha para supostamente “proteger” a colônia alemã e seus descendentes. Essa mudança de perspectiva da atuação brasileira frente à Alemanha em particular e ao Eixo torna relativo o oportunismo de certos membros do governo brasileiro – em particular do próprio Vargas – quando da vitória do Eixo de maio de 1940.
No artigo O tardio final da Segunda Guerra (de 07/10/2004), o Sr. classifica a planejada reforma do Conselho de Segurança da ONU como “verdadeiro epílogo da Segunda Guerra Mundial”. O Brasil pleiteia no G4 (junto com a Alemanha e o Japão – dois países do Eixo Berlim-Roma-Tóquio – e a Índia) um assento no CS e já participa de missões da ONU. Se conseguir a vaga, o Brasil será uma espécie de representante da América Latina no CS? Isso enfraqueceria a hegemonia que os EUA exercem sobre a América Latina desde a Segunda Guerra?
Parece-me evidente que o possível ingresso no Conselho de Segurança da ONU da Alemanha e do Japão (a Itália também reivindica tal ascensão) colocará um ponto final à Segunda Guerra Mundial. No caso brasileiro, trata-se de uma antiga reivindicação. Com efeito, em 1926, o Brasil – então membro do Conselho da Liga das Nações (LDN) – utilizou de forma dramática e contraproducente o seu poder de veto ao ingresso da Alemanha no Conselho da LDN após os Acordos de Locarno. Quando da definição dos membros permanentes da ONU em 1945, a candidatura brasileira foi novamente apresentada. Ora, o único país que a apoiava abertamente na ocasião – os Estados Unidos – atualmente conserva um cauteloso silêncio. Caso o Brasil ingresse no CS da ONU, ele não o fará como “representante da América Latina” mas sim em razão de sua “representatividade”. Ou seja, o país reúne atributos e uma vontade de servir à paz que pode ser útil ao enfraquecido multilateralismo dos tempos atuais. Certos Estados latino-americanos, como a Argentina e o México, já deram demonstrações de desconforto e de oposição velada à candidatura brasileira. O tema divide a América Latina e, portanto, o Brasil não deve cometer o mesmo erro de 1926, quando imaginou representar a América Latina e essa, finalmente, o desautorizou.
O eventual ingresso brasileiro no CS da ONU somente se tornará realidade – por óbvias razões políticas e jurídicas – caso os Estados Unidos concordem. Nestas condições, não vejo uma oposição entre os dois países, mas sim um complemento. Há muitos sinais emitidos pelo Brasil de sua disposição a um maior protagonismo na cena internacional, em especial no entorno sul-americano. Não creio que tal estratégia objetive criar um movimento contra Washington na região. O que está em jogo é algo mais sutil e profundo. Ou seja, se trata de encontrar mecanismos no sistema internacional que ofereçam aos países do Sul outra perspectiva distinta, que complemente a luta contra o terrorismo, buscando combater suas raízes que se encontram na xenofobia, no racismo, na intolerância, no subdesenvolvimento e nas incontáveis injustiças que sofre grande parcela das populações do Sul do planeta.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus é doutor em Relações Internacionais pelo Institut Universitaire des Hautes Etudes Internationales de Genebra (Suíça), autor de várias obras sobre política externa brasileira e relações internacionais, especialmente a obra O Brasil vai à Guerra (Editora Manole, São Paulo, 2003, 3ª edição, 365 p.). Atualmente, é professor titular na Universidade Federal de Santa Maria e diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma), RS, Brasil.