Carolina Maria de Jesus escreveu em seu diário, no dia 16 de junho de 1958, o quanto adorava a sua pele negra e o seu cabelo “rústico”: “Eu até acho o cabelo de negro mais iducado que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar movimento na cabeça ele sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reicarnações, eu quero voltar sempre preta”.
A escritora Carolina Maria de Jesus, autora de <i>Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada</i>, sucesso mundial publicado em 16 idiomas A escritora Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, sucesso mundial publicado em 16 idiomas
Presente no livro Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, sucesso mundial publicado em 16 idiomas, o relato passou despercebido no Brasil. Algumas pessoas, diante da notoriedade da autora, sugeriam o alisamento dos fios, como conta Tom Farias, autor de Carolina – Uma Biografia.
Devidamente ignorada pela escritora mineira que viveu entre 1914 e 1977, a recomendação guarda a tentativa de embranquecimento que muitas autoras negras sofreram ao longo de séculos no País. O tema, assim como a invisibilidade dada ao trabalho dessas mulheres, percorrerá mesas e oficinas que reúnem nomes como Flávia Oliveira, Giovana Xavier, Luana Génot e Sandra de Sá no primeiro dia do LER — Salão Carioca do Livro, nesta quarta-feira, Dia Nacional da Consciência Negra.
Haverá ainda uma discussão dedicada ao apagamento de autoras e autores negros, conduzida por Tom Farias, Mario Magalhães e Vagner Fernandes, na quinta-feira. Segundo Tom, que também é curador do evento, o apagamento de mulheres negras e seus trabalhos passam por situações extremas.
É o caso da romancista maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917). Em obras literárias e páginas na internet, a imagem dela ainda é atribuída à escritora gaúcha branca Maria Benedita Bormann – e a falta de cuidados com seus registros fez com que comemorações oficiais de seu nascimento se dessem em datas erradas. “Maria Firmina publicou seu livro Úrsula em 1859, sob pseudônimo, tamanho o receio de ser atacada ou malvista, e ficou mais de um século esquecida. Só recentemente passou a ser estudada e editada, mas ainda é pouco aceita na academia”, comenta Tom.
Ele identifica comportamentos semelhantes em relação à baiana radicada no Rio Hilária Baptista de Almeida, a Tia Ciata (1854-1924). A gênese do samba passou pelo quintal de sua casa, mas o protagonismo, não. Fenômeno similar aconteceu com Auta de Souza (1876-1901), poeta nascida em Macaíba, no Rio Grande do Norte, prefaciada por Olavo Bilac, mas ainda pouco conhecida.
Voltando ao trabalho de Carolina Maria de Jesus, a autora do cabelo “iducado”, Tom também menciona a resistência de acadêmicos em reconhecer a produção da autora como literatura. “Ela tem uma linguagem coloquial, que para o nosso entender teria erros de português, como ‘iducação’ e ‘viludo’. Então, a escondemos e não temos orgulho dela, mesmo que seja tão popular”, diz ele.
“Nas universidades, muitas pessoas torcem o nariz e dizem que ela não é escritora, porque só fez um relato. Mas há diários do mundo inteiro, como de Jean-Paul Sartre e Anne Frank, e de Getúlio Vargas e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, que não são dados como subliteratura”, compara o curador, exaltando como Quarto de Despejo traz uma concisão rara a muitos romancistas. “Ela tem uma precisão de linguagem quase de Vidas Secas, de Graciliano Ramos.”
Historiadora e professora doutora da Faculdade de Educação da UFRJ, Giovana Xavier reforça que, na literatura brasileira dos séculos 19 e meados do 20, a lista de intelectuais negras reconhecidas ainda é muito restrita. Para piorar, elas não aparecem nos programas oficiais de literatura brasileira. “Fala-se muito pouco em Maria Firmina, mesmo que ela seja a primeira mulher a escrever um romance na História do Brasil”, ilustra Giovana, autora de autora de Você Pode Substituir Mulheres Negras como Objeto de Estudo por Mulheres Negras Contando sua Própria História (Editora Malê).
Muitas intelectuais negras contemporâneas tiveram que chegar, por meios próprios, até suas antecessoras. Escritora e professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Leda Maria Martins conta que, ao longo de sua formação, não foi confrontada com autoras e autores negros. “A cada momento das nossas pesquisas, nos deparamos com escritores, dramaturgos e artistas negros que foram apagados”, afirma. E isso, ela salienta, está muito longe de ser um problema resolvido: “Percorro o Brasil inteiro e sinto muito essa demanda por parte dos alunos negros”.
O quadro é fruto do que Leda chama, há mais de 30 anos, de “pedagogia da invisibilidade”, como ela se refere a discursos e sistemas que excluem esses criadores. “A geração atual tem tido mais acesso a esses nomes. Mesmo assim, ainda é muito pouco”, diz. Em muitos casos, o tema é debatido apenas no mês de novembro, em função do Dia da Consciência Negra. “Mas essa preocupação tem que se fazer presente em todos os dias do ano – precisa estar no farol de atenção de todos os educadores.”
Um dos nomes mais celebrados entre a nova geração de autoras, a cearense Jarid Arraes percebeu, na adolescência, que já havia lido incontáveis livros, mas nunca uma obra escrita por uma mulher negra. “Já tinha acesso à internet, poderia ter procurado, mas isso nunca tinha me passado pela cabeça. Assim como muitas pessoas, no meu imaginário a figura de um escritor era de um homem branco de meia-idade. Era uma imagem cristalizada pelo racismo e pelo machismo”, recorda-se.
Movida pela sua curiosidade, Jarid chegou até a publicação anual Cadernos Negros, que reúne escritoras e escritores negros em livros de contos e poesia. Foi quando leu a primeira autora negra de sua vida: Conceição Evaristo. “Eu, que escrevia para mim mesma, passei a enxergar a literatura como algo possível. Já não era distante, restrita a pessoas do Sudeste, em seus círculos sociais fechados, com características físicas tão diferentes das minhas. Foi como ver uma mentira cair por terra. Como se tivessem me contado a vida inteira que mulheres negras não eram escritoras, mas então a farsa foi desmascarada”, diz.
Entre as transformações vivenciadas pela geração de Jarid estão as estantes reservadas às publicações de mulheres negras nas livrarias. Entretanto, a própria forma de apresentação dessas obras também guarda a necessidade de reflexões. A autora Cidinha da Silva, por exemplo, pondera que, embora não veja espaço para tentativas de embranquecimento de sua literatura, vivencia situações de apagamento do seu trabalho.
“Posso citar alguns casos, como o fato de toda mulher negra que escreve ser colocada na conta de ‘escritora negra’, sem diferenciar literatura de outros gêneros de escrita, como autoajuda, empoderamento e histórias de superação”, exemplifica ela, que já publicou mais de 15 livros.
Para Cidinha, o grande desafio é difundir um conhecimento pautado na valorização das singularidades literárias dessas autoras. “Há tantas coisas que não nos ocorre perguntar a essas mulheres, e ficamos presos apenas no ‘sociologuês’ de: ‘como é ser uma escritora negra?’.”
Com informações do O Globo
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