Cultura
Brasil ou Brasis…É nesse território – unitário e múltiplo – onde se faz uma ou várias artes. Um “Brasil” acaba sendo um ponto de vista a partir do qual se tem uma visão do mundo. “Antes que os portugueses tivessem descoberto o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.” (Oswald de Andrade, 1928). A cultura que se faz no Brasil – como veremos – seria obra de artistas antropófagos.
Há dois Brasis. Estão separados por um abismo, opostos. Rural e industrial. Há um Brasil tecnologicamente avançado e há um Brasil onde ressoam, na literatura de cordel, acordes e mitologias de um cancioneiro ibérico medieval. Miserável e rico, ou dividido entre o bom selvagem e o capitalismo selvagem. Há um Brasil formado por um encontro de culturas e há um Brasil que, no entanto, reflete hoje as conseqüências da escravidão. A rígida estrutura de classes e a imobilidade social no Brasil não se alteraram com a queda do muro de Berlim ou o ocaso do império soviético…
Há um Brasil sem pontos cardiais, que pouco sabe sobre diálogos Leste/Oeste ou Norte/Sul. Este Brasil nunca entenderia a lição de Torres-Garcia, que inverte o mapa da América do Sul e diz que nosso Norte é Sul, ou seja, que o nosso ponto de orientação deve ser determinado por nós mesmos. O Brasil desprezou até agora o diálogo com os seus vizinhos. Até a década de 80 havia grande dificuldade em assumir o bloco cultural latino-americano (com algumas exceções como a crítica Aracy Amaral). Foram os comissários europeus e norte-americanos que latino-americanizaram a arte brasileira. Tivemos medo, suspeitas e mal-estar. Temíamos que nossas bananas fossem confundidas como procedentes de alguma República bananeira qualquer. Havia quem preferisse que fôssemos universais, uma espécie de filhos mestiços da razão ocidental. Por que tanto medo? Já tínhamos a chave do mundo: a Bienal de São Paulo, que hoje inclui artistas de mais de 80 países.
Há um Brasil que se lembra do mundo e outro Brasil que se esquece de si mesmo. Esse primeiro Brasil tem museus com cinco Cézannes ou cinco Van Goghs. O segundo Brasil não tem nenhuma obra de Hélio Oiticica e nenhum museu até meados da década de 80. O Brasil é também um sistema de arte da eqüidistância: a mesma distância política que separa os grandes centros brasileiros de arte dos centros hegemônicos europeus e norte-americanos parece separar os centros regionais e periféricos brasileiros dos centros hegemônicos do país (São Paulo e Rio de Janeiro). Em outras palavras, o (neo/pós) colonialismo das relações internacionais se reproduz como um (neo/pós) colonialismo interno. Uma concentração de artistas e instituições de arte corresponde a uma concentração de renda interna em um panorama de graves desequilíbrios regionais estruturais.
A arte brasileira curou-se da síndrome de atributo da razão. Livrou-se de ser uma espécie de encarnação do Verbo, de ser uma ilustração de teorias. Desde o conto O alienista, de Machado de Assis, a cultura do Brasil não sabe – nem quer saber – dos limites entre a razão e a loucura transbordadas. Antonio Manuel, realizou um filme com o título de Loucura e cultura. “Há uma dúvida que pertence à clareza”, escreve Waltércio Caldas. As aparências não enganam, mas tampouco garantem nada. Nelson Leirner inscreveu um porco recheado de palha num salão de arte, no período da ditadura. A atitude de Leirner foi a introdução de um dilema indissolúvel para os jurados do salão oficial, um pequeno diagrama da estrutura do Estado autoritário: se o aceitassem como obra, os jurados demonstrariam não saber distinguir um porco de uma obra de arte. Se o recusassem, estariam confundindo uma obra de arte com um porco. Em última análise, a ação de Leirner demonstrava a irracionalidade do terror. A arte é o “exercício experimental da liberdade”, afirmava há algumas décadas o crítico Mário Pedrosa.
Poderíamos falar, no Brasil, de uma arte de negociações. A antropofagia (na literatura de Oswald de Andrade ou na pintura de Tarsila do Amaral) consagra uma formação étnica, de negociação de valores culturais entre distintos grupos nativos, europeus e africanos. Na ditadura, os artistas construíram uma arte de resistência e um espaço político para a sua obra (Nelson Leirner, Cildo Meireles, Antonio Manuel, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Antonio Dias). As relações de alteridade na fotografia de Rosângela Rennó ou de Paula Trope, em suas fotos de meninos de rua, tiradas com uma câmera desprezada, ao mesmo tempo em que esses meninos também fotografavam seus objetos preferidos com a mesma câmera e se convertiam em sujeitos da linguagem fotográfica. No campo da retórica, o Brasil se livrou do miserabilismo. Em troca, não perdeu de vista o oprimido.
No Brasil, a idéia de eqüidistância parece aludir à proximidade entre Paraíso e Inferno e à sua equivalência. Contra um maniqueísmo entre os dois Brasis, existe uma poética crítica na música de Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso, ou na fotografia de Miguel de Rio Branco. As superfícies de cor de Rio Branco, ora estridentes, ora suaves, resultam, em seu conjunto, imagens rapsódicas do Brasil, como uma terrível e sedutora realidade que se exala como “doce suor amargo”.