Caymmi e sua Música

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“A música de Caymmi muito deve
ao tempo de lazer de medida tão larga,
esse tempo tão baiano.”

Os pés nus marcam a areia úmida. Largos chapéus de palha e leves roupas de algodão. Os homens sentem a brisa que sopra da terra para o mar. Falam pouco, apenas o suficiente para a realização das tarefas. O sol ainda não surgiu e o grupo se movimenta orientado pela fraca luz de um lampião a querosene. E o marulho do mar.

A rede estendida para secar do dia anterior é enrolada. O mestre examina a vela para ver se há algum furo. Está em ordem; foi tratada com sangue de peixe e exposta ao sereno garantindo sua durabilidade. Os paus também são verificados: meios, bordos e mimburas em perfeito estado. O proeiro traz a quimanga, cheia de farinha, rapadura, banana e peixe assado, e o barril com água doce. O bico de proa carrega o samburá onde serão guardados os peixes. Os três homens estão prontos para partir.

Ainda é noite quando eles começam a rolar a jangada sobre os roletes feitos de tronco de coqueiro. Com a frágil embarcação que balança ao impacto das primeiras ondas.

Quando a água chega à cintura, Bento e Zeca saltam sobre os troncos. E Chico diz pra Rosinha:
— Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem-querer. Se Deus quiser, quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer. Meus companheiros também vaõ voltar e a Deus do céu vamos agradecer.

Em terra, as mulheres ficam fazendo renda e esperando, esperando e rezando pra Iemanjá. Pedem que não chova, que não venha pé de vento, que voltem seus homens com os samburás cheios de peixes. Iemanjá, rainha do mar, há de velar pelos homens, pois pescador, quando sai nunca sabe se volta, nem sabe se fica. Como Pedro que saiu as seis horas da tarde, passou toda a noite, não veio na hora do sol raiar…

Perdida no mar, a jangada parece um barco de náufragos. Mas seus tripulantes sabem muito bem o que estão fazendo: lançaram o tauaçu, e silenciosamente soltaram a linhada. O local é bom, logo o samburá começa a se encher. O mar está manso, a pesca é farta, e nos rostos queimados de sol há um sorriso. Eles voltarão com muito peixe, “vai tê presente pra Chiquinha e tê presente pra Iaiá”.

No brilho da tarde, ao longe, uma vela aparece. Sob o olhar aflito e resignado das mulheres, os pescadores se aproximam. Com água pela cintura empurram a jangada para a areia, onde estão os roletes, e todos, mulheres, velhos e crianças, ajudam a puxar a embarcação.

Até mesmo um menino, que não é filho de pescador, não mora perto, mas vive fascinado pelo mar, pelas histórias dos pescadores, e por aquela aventura diária da jangada sobre as ondas. Ele também quer ajudar, participar do esforço, sentir a alegria da volta. É uma criança ainda, mas pressente a beleza e o drama da vida daquela gente. Ele ama os pescadores, a jangada, a areia, o vento, o sol, o mar. E a Bahia.

Na praia de Itapoã, nas malícias do Rio Vermelho, nas ladeiras da cidade antiga cresceu o menino Dorival, filho de seu Durval, modesto funcionário, bom no violão e na talagada. Cresceu assim o moço Caymmi, na pesca, na serenata, na festa de bairro, no samba de roda, nos terreiros de santo. Vivendo cada instante de sua cidade e de sua gente, alimentando-se de sua realidade e de seu mistério, preparando-se para ser poeta e cantor de sua terra.

A música popular brasileira não era ainda assunto de gazetas, de revistas e festivais. O moço baiano, no entanto, não desejava nem o título de doutor nem o emprego público prometido, queria tão somente compor e cantar. Como muitos, teve que partir para ganhar a vida difícil. O destino do ita: o Rio de Janeiro. Isso em 1936.

Nestes 90 anos de vida e quase 70 anos de arte o menino Dorival não compôs demais, levado pelas ondas do sucesso ou da novidade. Cada música sua é inspiração verdadeira e experiência vivida. É o seu sangue. É a sua carne. É a sua verdade. Uma será mais bela, outra será mais profunda. Talvez, aquela seja mais fácil, mas nenhuma das músicas de Dorival Caymmi resulta da busca do sucesso ou do aproveitamento de qualquer circunstância.

Caymmi leva meses e meses trabalhando cada uma de suas músicas e letras, levado pela maré do tempo e da preguiça baiana e criadora.

Para Caymmi, a moda não existe

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