Filme não é ensaio sociológico e arte não é ciência (mesmo ‘humanas’). Este parece ser um bom mote para contrapor o tom dominante nas críticas sobre ‘Bacurau’, nova obra de Kleber Mendonça, em codireção com Juliano Dornelles.
Por Fernão Pessoa Ramos*
Cinema é uma arte, já agora anciã, que possui a particularidade de ser uma das primeiras ‘artes das massas’, envolvendo meio tecnológico. Talvez por esta característica, e em geral necessitando de recursos financeiros elevados, o cinema possui facilidade em condensar e representar (no modo fílmico) tendências sociais emergentes. Os principais momentos de nossa história universal (da guerra civil norte-americana à conquista da lua, passando pela revolução soviética, a frente popular francesa dos anos 1930, o pós-guerra europeu, o maio de 1968 e a contracultura, etc) deixaram sua digital em obras da cinematografia mundial. No caso brasileiro, um de seus momentos privilegiados, o Cinema Novo, teve como característica trazer em suas costas o sopro da história e grandes quadros de viés simbólico. Parecia ser natural, naquela época, representar a história do Brasil no modo diegético-ficcional narrativo e assim foi feito durante mais de uma década. O golpe de 1964 e a ditadura militar que se seguiu tiveram suas forças sociais (a alta burguesia industrial, os agentes do imperialismo, a classe média, o povo deserdado, os proprietários da mídia, o jovem revolucionário) transformadas em personagens de universo ficcional, com tramas mais ou menos lineares.
Deste conjunto, podemos destacar um traço no exercício do cinema no Brasil: nesta arte quase nunca houve cineastas populares, do povo propriamente, envolvidos diretamente, de modo hegemônico, em sua produção. Excetuando-se alguns de nossos grandes atores, é arte feita dominantemente pela classe média que, com recursos próprios ou captando financiamento público/estatal, consegue condições materiais para criar cinematograficamente. Nos momentos em que toma consciência desta situação paradoxal, e a representação do outro popular emerge como necessidade e fissura (ou ferida), o cinema brasileiro atinge seus píncaros criativos – uma grande estética que consegue abranger a nação, refletindo seus dilemas, contradições radicais e aspirações recorrentes. O ‘popular’, então, é sempre o ‘outro’ no cinema brasileiro, pois não é ele que faz a arte, como ocorre naturalmente em certa música, por exemplo (com o samba). A representação fílmica do povo pela classe média (que possui os recursos necessários para a cara arte do cinema), envolve, portanto, a constituição de uma alteridade. Na modernidade, este movimento de representação, ou saber, sobre o outro (seja de classe ou étnico), decorre em ‘culpa’ e ‘má-consciência’, sentimentos bastante cristãos dos quais as melhores obras do cinema brasileiro estão carregadas. Não propriamente ‘ressentimento’, como querem alguns, pois não é do lado popular que parte – mas sim má-consciência e seus afetos correlatos, como a culpa e a compaixão. As principais obras do período chamado ‘Retomada’, nos anos 1990 e 2000 (podemos citar ‘Central do Brasil’/Salles, 1998; ‘Carandiru’/Babenco, 2003; ‘O Invasor’/Brant, 2002, ‘Tropa de Elite 1’/Padilha, 2007 e outras) estão carregadas destas emoções de fundo judaico-cristão que embasam nossa civilização.
Nem as comédias escapam inteiramente da dialética que faz da degustação da catarse na mimesis, metamorfose de culpa e compaixão. Há, no entanto, um outro caminho que o filme ‘Bacurau’ de Kleber Mendonça percorre. Aquele que envolve a intertextualidade e o diálogo, irônico ou debochado, do cinema com si mesmo, no limite da densidade dos gêneros que sua própria história conformou (‘western’, ‘noir’, ‘musical’, ‘chanchada’, ‘ficção cientifica’). No Brasil contemporâneo de ‘Bacurau’, o Brasil de Bolsonaro, o espaço para a degustação, pela classe média, da culpa e da compaixão está subitamente se restringindo. Agora as modalidades emergentes são de coloração mais ‘punk’, por assim dizer. Uma diferença é que sistemas alternativos de produção audiovisual (com ou sem apoio estatal) estão emergindo com o barateamento de novas tecnologias e novas formas de exibição e distribuição audiovisual. Está se firmando, como nunca antes, uma nova produção com origem em comunidades periféricas. E a imagem que ela traz de sua realidade nem sempre coincide com a figura do popular criminalizado, ou vitimizado, tão ao gosto da boa consciência. Novas figuras, novos universos ficcionais estão aparecendo, para o bem e para o mal.
‘Bacurau’, neste sentido, é um filme que ainda anda no universo do popular como alteridade de classe, mas o sintoniza num modo diferente. A compaixão já não fornece a mesma combustão de antes: um lado do objeto catártico, o ‘coitadinho’ popular, saiu dos eixos e agora caminha com as próprias pernas. O artista que sabe sintonizar seu tempo (caso em ‘Bacurau’), mostra o objeto da piedade também dando ‘porrada’, também batendo, mas sem o ‘seguro’ da compaixão, o que complica o circuito do afeto no resgate da boa consciência. A catarse mudou de lado no Cinema Brasileiro? Em vez das lágrimas grossas da compaixão provocadas por ‘Central do Brasil’, ou ‘Carandiru’, agora é a descarga do olho por olho, o revide da ação que tem vontade de potência, que carrega a depuração do afeto na mimesis. São recorrentes as descrições de exaltação e aplausos entusiásticos do público (coisa rara na fruição mais anônima do cinema), nas cenas mais sangrentas da ‘Bacurau’. Se a catarse da culpa pela nação podia ser tocada em ‘Carandiru’, com ‘Aquarela do Brasil’/Ary Barroso servindo de fundo para o massacre do povo nas masmorras, porque não Vandré (‘Réquiem para Matraga’) reciclado, como fundo musical para o bangue-bangue cangaceiro sanguinário que nos lava a alma? Parece estar sendo difícil pensar a realidade social brasileira sem o auxílio da má-consciência como bengala.
O personagem pendular representando a classe média, tão bem caracterizado por Jean-Claude Bernardet em sua análise da emergência do Cinema Novo em ‘Brasil em Tempo de Cinema’/1967, agora sumiu do horizonte. O artista que sente sua época – e Kleber Mendonça, que assina o filme conjuntamente com Juliano Dornelles, é um deles – mostra a sensibilidade do dia para o conflito direto, frontal, encarniçado. O Antônio das Mortes de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (Glauber Rocha/1964), levando pelo braço com cuidado, tal anjo da história, os camponeses Rosa e Manuel em direção ao fim da alienação e à terra prometida do sertão virado mar, ficou atrás. O fim da mediação redentora está chocando alguns, pois a história também tem sua brutalidade e muitas vezes pegadas pesadas.
Por outro lado, e aí está incrustrada sua liberdade, ‘Bacurau’ é ficção não realista, uma espécie de ‘Mad Max’ brasileiro. Começa com o letreiro ‘daqui a alguns anos’ e imagens espaciais da Terra vista do espaço, fechando para o território nacional. O fundo musical, que ocupa exclusivamente a trilha sonora da sequência inicial, é a canção ‘Não Identificado’ de Caetano Veloso (1969), que fala de um ‘anticomputador sentimental’, de ‘um disco voador’, lançado ‘no espaço sideral do céu de uma cidade do interior’. A descrição do universo ficcional fantasista do filme é precisa e insere o filme logo na borda gênero, situando-o um futuro não muito distante (mas que não é o presente), numa terra desolada e sem lei na qual o povo resolve exercer sua potência e faz valer a força e a genealogia de sua ética de valores. Os traços intertextuais da narrativa estão claros, com tonalidades de deglutição tropicalista (arcaico/moderníssimo) e tarantinescas que fazem o pretendido realismo, que facilitaria a crítica do filme como ensaio sociológico, destoar. É fato que incomoda alguns críticos com sensibilidade social mais purista, que se sentem mais à vontade com um cinema linearmente proposicional.
A intertextualidade de gênero presente em ‘Bacurau’ faz camada e dá ao filme a centrifugação necessária para escapar das amarras nas quais o cinema brasileiro de corte social acabou preso. É movimento similar ao que já encontramos em ‘Cidade de Deus’/2002, de Fernando Meirelles, mas agora presente de modo distinto na contemporaneidade de sua constituição, voltada para a questão do empoderamento popular sem peias. E, no Brasil de Bolsonaro, o percurso é mesmo fazer a potência per si, com um porrete na mão. ‘Bacurau’ traz junto com a abundância do sangue ketchup e o enterramento vivo (outra imagem de Tarantino), a centrifugação kitsch do ultramoderno tropicalista, a ficção delirante acelerada misturada à lentidão realista-arcaica (mais na primeira metade do filme), e outras figuras que a mistura da intertextualidade de gêneros abre, como o disco voador, o pistoleiro infalível, a cidade vazia esperando o duelo e, bem brasileira, as cabeças cortadas. Essa imagem realista, estourando no gênero, talvez Mendonça tenha ido buscar em ‘Memórias do Cangaço’/1964, pequena joia do documentário brasileiro de Farkas e Paulo Gil Soares, que parece ter sido colada ao filme.
Com ‘Bacurau’, Kleber Mendonça afirma-se um dos principais cineastas da nova geração que chegou ao longa com o milênio já iniciado, mostrando um seguro domínio estilístico da arte. Em ‘O Som ao Redor’/2013, a imagem arquetípica do filme já era a impressionante cachoeira de sangue na propriedade dos ‘sinhozinhos’, antecedendo o cerco progressivo ao ‘coronel’ sanguinário em seu refugio urbano; em ‘Aquarius’/2016, é a invasão dos cupins corroendo, por dentro e oculta, sem dar aparência, as entranhas de uma classe média decadente em sua isolada ilha de resistência. Em ‘Bacurau’ o ciclo se fecha. Agora, sem mediações, a regressão inoperante dá vazão ao mito de potência represada liberada. Com fundo nietzschiano, o outro oprimido-escravo faz valer sua hora, jogando ao alto a boa consciência do mestre e seu conselho para a medida do porrete na intensidade que convém. É o Brasil de Bolsonaro, ou o Brasil que Bolsonaro deu ensejo. O mais interessante é que, nesta medida (a medida da representação que se estabelece), o Brasil de ‘Bacurau’ tome forma não através de uma representação realista, mas pela mão do gênero, que se volta como sobre-determinação para buscar fôlego na história do cinema e em estilos eminentemente intertextuais como o Tropicalismo. Talvez seja o preço que o cinema de Mendonça pague para se livrar do peso, que ainda carrega, da mediação como exercício da voz do outro, reapresentação daquilo que sabe não mais lhe ser próprio.
*Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Publicou ‘Nova História do Cinema Brasileiro’ (2018) e ‘Mas afinal… o que é mesmo documentário?’ (2008), entre outros.
Fonte: Jornal da Unicamp
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