“…desde Pelo telefone (e até mesmo antes dele, claro!), o samba continua, resistindo, sobrevivendo e se adaptando”, afirmou Adélcio Camilo Machado, professor de história social da música da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A entrevista foi concedida ao jornalista José Carlos Ruy, editorialista do Portal Vermelho. No ano em que Pelo Telefone marca o centenário do samba, Adélcio revisita as muitas feições do gênero.
Bide (de gravata escura) e Marçal, integrantes da Turma do Estácio, que introduziram “feições ao samba”, das quais muitas se mantém até os dias de hoje, segundo AdélcioBide (de gravata escura) e Marçal, integrantes da Turma do Estácio, que introduziram “feições ao samba”, das quais muitas se mantém até os dias de hoje, segundo Adélcio Confira a entrevista:
No momento em que comemoramos os 100 do registro do primeiro samba (Pelo Telefone), como podemos olhar esta história? Quais foram seus passos mais significativos? O samba foi, nas décadas seguintes, o mesmo?
Adélcio Camilo Machado – O samba assumiu formas muito variadas de expressão ao longo da história. Na verdade, a própria eleição do Pelo telefone como “primeiro samba gravado” deve ser encarada como algo suspeito. Vários pesquisadores identificaram outras gravações lançadas com o rótulo de “samba” anteriores ao Pelo telefone. E, mais do que isso, a própria palavra samba já havia sido designada para caracterizar ou descrever práticas musicais bem anteriores e distintas daquela comunidade negra que habitava o Rio de Janeiro no início do século XX, de onde saiu o “Pelo telefone”. Nesse sentido, o próprio “Pelo telefone” já não era o mesmo samba em relação àquele praticado em regiões rurais do Brasil, especialmente na Bahia.
O fato é que houve um samba, gravado na cidade do Rio de Janeiro, que foi tomado como o “primeiro samba”, o Pelo telefone. Portanto, se estamos tratando da história DESTE samba – e, certamente, deixando de lado outras “histórias do samba” que são eclipsadas por essa narrativa hegemônica -, então podemos relembrar alguns momentos mais significativos. Dentre eles, eu destacaria, em primeiro lugar, a consolidação do samba praticado nos morros cariocas, especialmente no morro do Estácio, já ao final dos anos 1920. Os sambistas do morro do Estácio, dentre os quais se incluem Ismael Silva, Bide, Baiaco e Brancura, desenvolveram um novo paradigma rítmico e um novo instrumental para o samba (tamborim, surdo e cuíca), adaptando-o ao desfile das nascentes escolas de samba. Essas transformações conferiram ao samba muitas das feições que se mantém até os dias de hoje.
Outro momento bastante emblemático foram os esforços em “adequar” o samba a um certo padrão de gosto das elites brancas. Durante esse processo, buscou-se afastar o samba de suas conexões com o universo religioso afro-brasileiro e das práticas da malandragem. A polêmica que envolveu os sambistas Noel Rosa e Wilson Batista é expressão desse conflito simbólico sobre o samba. Tal conflito não se expressou somente nas letras das canções, mas também em seu arranjo musical. Progressivamente, o uso da percussão no acompanhamento dos sambas, que remetia aos batuques negros, foi sendo substituído por (ou, ao menos, passo a coexistir com) arranjos chamados de “orquestrais”, utilizando uma instrumentação inspirada nas big-bands estadunidenses. Com isso, o samba se moldou também a um certo padrão de gosto internacional, passando a ser passível de exportação através das ondas radiofônicas. A canção Aquarela do Brasil se configura como um emblema desse processo.
Convém lembrar ainda a apropriação do samba pela classe média urbana carioca nos anos 1950, amalgamando-o a práticas jazzistas. Isso se deu em muitas direções, de acordo com os diversos músicos que fizeram essa mistura. Dentre as muitas experimentações, eu destacaria duas. Primeiramente, a emergência do chamado “samba-jazz”, predominantemente instrumental, no qual os músicos inseriram o samba nas práticas jazzísticas. Em segundo lugar, a síntese da percussão do samba na batida de violão de João Gilberto, que consistiu num dos elementos mais caracterizadores da bossa nova.
Por último, seria conveniente lembrar uma busca por uma retomada do samba “tradicional” e da ancestralidade africana do samba, o que se manifestou nos “afro-sambas” de Baden Powell e Vinicius de Moraes em finais dos anos 1960 e repercutiu em diversos outros artistas. Martinho da Vila, por exemplo, regravou canções dos “primitivos” do samba, como Donga e João da Baiana, e também fez pesquisas de canções africanas.
O samba que nasceu amaxixado nas rodas de samba nas casas das tias baianas (como a Tia Ciata) foi em seguida adotado pelo público urbano e de classe média. Passou pela Estácio, conquistou Vila Isabel e Noel Rosa o levou ao gosto dos brasileiros. O samba, depois dessa trajetória, continuou o mesmo?
Como já comentei, o samba se apresenta com muitas feições. Portanto, ao longo desse processo todo, ele não permanece o mesmo, mas vai se modificando, adaptando-se e redefinindo-se continuamente. Talvez uma forma interessante de perceber essas modificações e escutar algumas regravações desses sambistas. Tome-se, por exemplo, a gravação que Tom Jobim fez da canção Três apitos, de Noel Rosa, para ver como esse samba foi remodelado sob a ótica bossanovista. Ou, ainda, tome-se o disco de Itamar Assumpção regravando canções de Ataulfo Alves, aproximando samba e pop music. O samba, portanto, vai se modificando e redefinindo continuamente. Se temos alguma ideia mais “essencialista” do samba, no sentido de imaginar quais são suas características definidoras, isso se dá unicamente porque existe uma narrativa histórica que legitima UM TIPO de samba, em detrimento de uma grande diversidade presente nesse repertório.
O samba ganhou o mundo. Foi para os EUA, e Carmem Miranda teve importante papel nisso. Ari Barroso e Aquarela do Brasil seguiram caminho semelhante. E, na rota oposta, a influência norte-americana ganhou espaço no ritmo brasileiro. Como esta troca cultural e musical se refletiu, anos mais tarde, na “bossa nova”? Você pode falar um pouco sobre como isso ocorreu?
Ao menos desde os anos 1930, os Estados Unidos desenvolveram uma intensa propaganda cultural por toda a América, orientado pela ideia da “política da boa vizinhança”. Desde então, foi sendo construído e intensificado um imaginário positivo e encantado sobre os Estados Unidos no Brasil, que se expressou em diversas áreas da cultura e de formas distintas. Na zona sul carioca, isso se expressou numa grande valorização da canção e da música instrumental estadunidense. Com isso, foram surgindo lojas especializadas em importação de discos dos cantores, das orquestras de jazz e dos pequenos conjuntos de música instrumental. Paralelamente a isso, foram surgindo fãs-clubes de artistas estadunidenses, que se configuravam como espaços para se ouvir esse tipo de música e também para praticá-la.
Porém, além de escutar e reproduzir o tipo de música produzido nos Estados Unidos, esses músicos da zona sul carioca passaram a fazer releituras da tradição musical brasileira a partir de uma perspectiva jazzística. Complementarmente, começaram também a compor canções ou peças instrumentais em que se misturassem elementos rítmicos e poéticos do samba com elementos composicionais e orquestrais do jazz e da canção estadunidense. Penso que esse processo explica, ao menos em partes, o surgimento da bossa nova e, além dela, do samba-jazz instrumental.
Na década de 1960 a popularidade do samba caiu, mas logo se recuperou na década seguinte. Em que medida essa variação na popularidade refletiu a conjuntura social e política do Brasil? Como o samba registrou artisticamente anseios brasileiros?
Algumas pesquisas apontam que, nos anos 1960, o mercado fonográfico ficou segmentado da seguinte maneira: uma parcela mais massificada da audiência e, em geral, de menor poder aquisitivo, foi responsável pela grande vendagem da jovem guarda; por outro lado, uma parcela mais restrita, geralmente ligada ao circuito universitário e de maior poder aquisitivo, foi responsável pela popularidade de artistas ligados à MPB. Certamente, o samba estava presente na MPB, porém de modo mais diluído. De fato, isso representou uma perda de popularidade do samba ao longo da década de 1960.
Com o golpe militar de 1964 e sua política de modernização, o mercado fonográfico foi beneficiado. O custo dos equipamentos de reprodução de discos barateou-se bastante e houve um crescimento expressivo nas vendas desses produtos. Isso impactou também num aumento nas vendas dos discos de maneira geral. Porém, como se sabe, a censura foi especialmente atenta para compositores e intérpretes ligados à MPB. Muitos deles foram expulsos do país e outros estavam sob contínua pressão. Nesse sentido, fora um ou outro sucesso de vendas mais isolado, como foi o caso do disco Construção de Chico Buarque, os artistas ligados à MPB não tiveram vendagens expressivas. Por sua vez, a própria jovem guarda foi perdendo popularidade. Alguns autores explicam essa queda em virtude da jovem guarda não ter acompanhado o movimento do rock internacional. O fato é que os artistas ligados à jovem guarda foram perdendo sua expressividade entre os mais vendidos.
Nesse sentido, o samba voltou a ocupar os primeiros lugares das paradas de sucesso. E talvez nisso houvesse até mesmo certa complacência da ditadura militar. Isso porque o samba já se configurava como um dos ícones da “identidade nacional” e o elemento ufanista era algo emblemático do discurso dos militares. Portanto, não é de se estranhar que houvesse um crescimento do samba no momento em que se fortalecia também certo ideário nacionalista por meio de uma ideologia do governo ditatorial.
Com isso, ao menos nos anos 1970 e entre os sambas de maior vendagem, não se encontram tantos exemplos de canções que expressam anseios da nação. Ao invés disso, foi gravada uma grande quantidade de sambas de grande sucesso com temáticas amorosas ou até mesmo ufanistas. Certamente, sambas de caráter mais crítico continuavam a existir, mas não estavam mais ocupando os primeiros lugares da audiência do período.
E hoje, 100 anos depois, como está o samba?
Vejo que o samba continua muito bem! Ele aparece nos mais distintos contextos e das mais diversas formas. Podemos encontrá-lo entre as canções mais vendidas, sob as novas roupagens do “pagode”. Podemos encontrá-lo também nos movimentos de “revitalização” do samba tradicional. Podemos encontrá-lo em muitas rodas de samba, que se realizam em diversas cidades em nosso país. E ainda podemos encontrá-lo na produção de artistas que, mesmo não vinculados unicamente ao samba, acabam assimilando alguns de seus elementos a suas composições. Isso aparece, inclusive, em artistas ligados ao universo do hip-hop, como Criolo e Emicida. E até mesmo no grupo Racionais MC’s, um dos primeiros e mais expressivos grupos de rap do país, o samba deixa suas marcas. Em seu último disco, a faixa Quanto vale o show se inicia com Mano Brown percutindo um pandeiro, fazendo uma marcação típica do samba de partido-alto, e comentando: “A melhor coisa que eu aprendi fazer na minha vida foi isso aqui, ó”. Portanto, desde Pelo telefone (e até mesmo antes dele, claro!), o samba continua, resistindo, sobrevivendo e se adaptando. Fiquemos atentos aos próximos episódios para ver quais surpresas o samba nos reserva!
Portal Vermelho –
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