As culturas populares 2

 

Por Afonso Oliveira

 

“Muitas vezes, a elite tenta colocar embalagens na cultura popular ou reduzi-la a uma peça de museu”

 

No mês de novembro teve início uma série de seminários sobre as culturas populares, que vai rodar o país, promovido pelo Ministério da Cultura, pela organização Raízes da Tradição e pelo Fórum Permanente das Culturas Populares. Esse momento é muito importante, não apenas para reflexão e a ampliação do debate, mas pela urgência e necessidade de colocar na ordem do dia a questão dos direitos civis e autorais dos artistas que carregam o rótulo de artista popular.

Primeiro precisamos entender que os artistas populares não estão apenas no Nordeste do Brasil e que também não é verdade que no Norte-nordeste se encontra a maior parte dessas manifestações. O que acontece no Sudeste, no Centro-oeste e no Sul é apenas um maior massacre sobre desses artistas, suas comunidades e suas manifestações culturais. Durante muito tempo o Nordeste recebeu o rótulo de povo atrasado, preguiçoso e primitivo, se veiculou e se estabilizou a idéia que cultura popular das boas só tem em Pernambuco, Maranhão, Alagoas e Sergipe. Esse é só mais um mito de um país sem projeto de nação que só prioriza a estética da elite, e não percebe que nossa força está na diversidade.

A história nos mostra a força dessas comunidades quando elas se articulam e lutam por suas expressões. Os resultados de inclusão social e conquista de direitos são marcantes e influenciam positivamente o conjunto da sociedade. É muito comum a estética elitista influenciar e educar mal algumas comunidades, levando a um decréscimo nos níveis educacionais e de auto-estima. Muitas vezes, a elite tenta colocar embalagens na cultura popular ou reduzi-la a uma peça de museu e objeto de estudo e pesquisa. Dessa forma ela se utiliza das culturas populares para enriquecer seu próprio conteúdo e depois anuncia que aquele conteúdo é uma fusão de primitividade e contemporaneidade, perpetuando a idéia de que aqueles pobrezinhos são capazes apenas de servirem a eles como inspiração e mais nada. A comida dos escravos hoje é comida de restaurantes da elite brasileira, mas que mantêm seus descendentes nas cozinhas, garantindo o conteúdo. Há muito de verdade na frase de Ariano Suassuna “Foi o maracatu que valorizou o rock e não o contrário”.

É urgente que o Estado brasileiro invista de forma universal na valorização dessas comunidades e que o resultado dessa valorização seja primeiramente consumido por essas próprias comunidades. O programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, tem esse papel histórico, mas é preciso que a sociedade também abrace a idéia e comece a criar alguns temas de consenso para o desenvolvimento da nação. Temos pouco consenso em nosso país, e temos que partir de algo que possibilite sairmos dessa barbárie social e cultural que está transformando o Brasil, num país de multidões de excluídos e sem direitos.

Parece-me urgente também, aproveitando o tema, refletimos sobre a cultura popular da política, que se caracteriza pela privatização do estado a serviço do poder, onde todos os debates estão sempre em torno das próximas eleições e nunca em torno de um projeto de nação. A eleição de 2004 foi uma prévia da eleição de 2006, onde não se discutiu um projeto para o Brasil. Perdemos a oportunidade de discutir as questões das culturas locais e elegermos os projetos que contribuíssem para o que temos discutido exaustivamente em fóruns e conferências de cultura. Como é possível construir um sistema nacional de cultura se esse tema não esteve na pauta e nos projetos da maioria dos candidatos a prefeitos e vereadores? Temos exceções, mas estamos todos muito longe do inicio do ideal e a cultura dos populares está impressa pela cor do cansaço e da descrença.

Não sejamos apocalípticos, mas temos que ser realistas. Precisamos assumir que não sabemos como trabalhar com a cultura popular brasileira. Um tesouro maravilhoso que a natureza nos deu e que só fazemos delapidar, mistificar, tratar como mero coadjuvante de nossa formação e não tornamos essa riqueza como fator estratégico para o nosso desenvolvimento. Isso é o Brasil real e o carnaval é a encarnação dessa realidade nua e crua, sem tirar nem pôr. Leiam o que Katharina Doring, uma etnomusicóloga alemã, radicada no Brasil, escreve com tanta firmeza e clareza sobre a cultura popular brasileira:

“A criação musical brasileira é alimentada pela riqueza rítmica, melódica, poética, coreográfica e cênica das manifestações tradicionais que são compostas de elementos musicais das culturas antigas européias, árabes, africanas e ameríndias. Boa parte dessas representações cênico-musicais tem sido documentada, pesquisada e estudada por folcloristas, antropólogos, etnomusicólogos, historiadores e jornalistas na verdadeira intenção de preservar a memória das heranças culturais de outrora. Pouco tem se estudado a possibilidade de incluir os grupos musicais das tradições regionais nos circuitos culturais profissionais intermunicipais, urbanos, (inter-)nacionais. Um dos argumentos da divisão entre folclore e música popular sempre foi o suposto anonimato das músicas que são chamadas de domínio público – uma visão que tem diminuído o reconhecimento da ação de artistas e autores identificados regionalmente. Sem querer desvalorizar a criação coletiva, ou seja, a contribuição de muitos indivíduos para a realização de uma manifestação cultural, é necessário reconhecer a atuação de pessoas com especial vocação artística no chamado anonimato – o singular no plural.”

É essa a fórmula e a forma que estamos perpetuando há várias gerações. A triste história de ignorar a nós mesmos; e ignorando a nós mesmos, fica difícil o Brasil crescer com justiça social. Quem nesse país se diz índio? Há muito pouco tempo começamos a assumir nossas veias negras e quão importante foi essa atitude, mas parece que para consolidar a participação da cultura popular vai ter que muita água passar por baixo da ponte. E mais uma vez preciso repetir que precisamos criar nossas pontes. Senão ficaremos sempre isolados do mundo.

Afonso Oliveira é produtor cultural e diretor do Instituto Pensarte

 

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