As bravas mulheres do bandeirismo paulista

 

 

 

 

 

 

No século XIX, muitas mulheres paulistas ainda se cobriam com mantos de baeta escura. Aquarela de Eduard Hildebrant, 1844

 

 

Boas esposas e mães de família, quase sempre recolhidas aos seus lares. “Recatadas” e “austeras”, nas poucas vezes que saíam à rua cobriam-se totalmente com mantos de baeta – um tecido de lã grosseiro e tingido de cor escura -, o que lhes rendeu o apelido de “mulheres tapadas”. Essa era a imagem estereotipada das mulheres paulistas do período colonial que muitos historiadores repetiram em suas obras durante muito tempo. Era quase um consenso entre eles que, quando as moças se casavam, passavam do poder paterno para o do marido, a quem seriam submissas pelo resto da vida. Limitavam-se a costurar, lavar, bordar, fazer rendas, mandar nas escravas, rezar, e, é claro, parir e criar muitos filhos, um após o outro.

 

 

 

Poucos pesquisadores apresentaram outras imagens. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, insistiu em que elas saíam de casa mais vezes do que se pensava, e tinham muita participação na vida de suas comunidades: faziam curas e partos, lutavam pela sobrevivência cotidiana. Outros apontaram que as moças pobres, obrigadas a trabalhar muito para viver, eram sempre vistas nas ruas. Só as mais ricas ficavam em casa, à espera de um casamento vantajoso. Benedito Carneiro Bastos Barreto, o caricaturista Belmonte, outro autor da história paulista, destacou que a tal capa de baeta nem sempre fora marca do recato feminino como se pensava.

Ela permitia que muitas senhoras e senhoritas freqüentassem as casas dos homens – em outras palavras, fizessem o que quisessem – sem ser identificadas. Mesmo assim, ao retomar a seriedade habitual dos pesquisadores, ele enfatizou que eram exceções, pois a atitude de recolhimento imperava.

Assim, durante muito tempo as mulheres do período bandeirista – séculos XVI e XVII – foram vistas como figurantes da história. Enquanto os maridos e filhos cuidavam dos negócios comerciais ou seguiam, sertões adentro, à caça de indígenas e à procura de ouro nas bandeiras, elas simplesmente cuidavam das coisas do lar. Aos homens coube alargar as fronteiras da América Portuguesa, percorrendo territórios que, pelo Tratado de Tordesilhas, pertenceriam à Coroa da Espanha e que, mais tarde, passaram à Coroa lusa. Eles destruíram, ainda, as missões jesuíticas em territórios que hoje compõem o Rio Grande do Sul e Paraguai, na sua sede de escravos indígenas e riquezas. A elas, restou a tarefa de multiplicar a prole dos bandeirantes. Tudo parecia encaixar-se claramente. Homens e mulheres teriam vivido em universos totalmente separados, com papéis sociais opostos.

Houve, porém, quem duvidasse desse quadro, em que os universos feminino e masculino aparecem tão separados e antagônicos, e da falta de participação na comunidade e a submissão aos padrões vigentes como marca das paulistas. Pesquisas recentes têm demonstrado outra realidade, muito diferente da tradicional.

Mistura cultural
Nos primeiros anos da colonização da vila de São Paulo ainda não havia mulheres brancas. Todas as uniões ocorriam entre portugueses, espanhóis ou outros europeus e as cunhãs indígenas. Os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, muito incomodados, relataram em suas cartas que esses laços prescindiam do sacramento da Igreja Católica, além de muitos serem temporários e poligâmicos. Houve grande esforço dos padres no intuito de regrar a vida dessa população. Impuseram, portanto, o batismo, a catequese e o uso de roupas para os índios, além do sacramento do matrimônio monogâmico e indissolúvel às famílias.

Não era, porém, com qualquer índia que os colonos brancos se casavam perante a Igreja Católica, e sim com as advindas de tribos aliadas aos portugueses. O exemplo mais antigo é o

 do influente João Ramalho com Bartira, filha do chefe Tibiriçá, união depois sacramentada pela Igreja, após o batismo daquela que já era sua esposa – pelo costume indígena – e de seus pais e irmãos. Matrimônios de europeus com as que eles denominavam “negras da terra” originaram as mais antigas famílias paulistas, cujo traço fundamental era a miscigenação: seus filhos legítimos eram mamelucos e traziam uma intrincada mistura cultural. Se, por um lado, vestiam-se à européia, falavam português e eram católicos, por outro, entendiam-se dentro de seus lares nas línguas maternas e mantinham muitos hábitos e formas de lidar com a natureza indígenas. Esse foi o perfil, portanto, das mães e filhas de famílias paulistas no período bandeirista.

Quanto às outras índias, dois destinos lhes foram reservados. Se sua gente fosse levada para algum aldeamento, tinham como tutores os jesuítas, sob o estatuto de “administradas”. Lá, eram batizadas, catequizadas e recebiam os demais sacramentos, entre eles provavelmente o do casamento com algum índio igualmente aldeado. Elas, seus maridos e filhos constituíam a mão-de-obra fundamental para os padres, de maneira a garantir a sobrevivência desse agrupamento, com o desempenho de várias funções. Também poderiam ser cedidos temporariamente para realizar tarefas para algum colono, que por isso pagaria uma composição (aluguel) aos padres.

Se sua gente fosse capturada por alguma expedição bandeirante, poderiam ser revendidas para outros lugares ou mesmo permanecer como cativas na própria vila de São Paulo. Apesar de batizadas e instruídas minimamente na fé católica, não tinham o resguardo da tutoria clerical e eram submetidas ao terrível cotidiano da escravidão. Podiam se casar com algum outro escravo ou, como atestam muitos documentos, simplesmente gerar uma série de filhos de vários pais, aí incluídos os próprios senhores. Não raro, estes reconheciam os ilegítimos em testamento, legando-lhes alguma coisa.

A vida dessas mulheres é pouco documentada, pois, além de não terem propriedades, elas se tornavam a propriedade de alguém. Como tendência geral, os colonos não devolviam os indígenas “alugados” aos jesuítas, tornando-os escravos de fato, embora na documentação apareçam propositadamente declarados como “forros” ou “administrados”. Todas essas índias viviam o dia-a-dia de trabalhos pesados da família de seus proprietários, com quem se envolviam como concubinas. Mais tarde, teriam a seu lado, nas lides da escravidão, africanas que começaram a ser introduzidas na região paulista no correr do século XVII, quando houve condições econômicas de começar a comprar “negros de verdade”, enquanto algumas “negras da terra”, escravas ainda, seguiam os bandeirantes para o sertão.         

Formosas e varonis
Da união dos primeiros conquistadores com as cunhãs das tribos aliadas, surgiram as mais antigas linhagens familiares paulistas. É nelas que se encontra outra categoria feminina da colônia: a das mulheres livres. Das mulheres e dos homens pobres, indígenas ou mamelucos “sem família” (reconhecida), que possivelmente viviam à deriva pelas regiões paulistas ou viravam pequenos roceiros, a documentação pouco oferece no período. Sem dúvida, o destino reservado às moças de família dessa sociedade mameluca era casar-se, ou, em caso de exceção, tornar-se freiras. Por isso mesmo, elas ficavam responsáveis pelo gerenciamento de muitas coisas de seus lares e, se não morressem no primeiro parto, teriam tantos filhos quantos o corpo pudesse suportar. Isso não significa, porém, que fossem eternamente caseiras e isoladas.

Casar era uma questão de sobrevivência, de propriedades, de aliança entre famílias e, em último caso, de afinidade entre os cônjuges. Por isso mesmo, os matrimônios eram arranjados pelos pais dos noivos geralmente com antecedência de anos: havia até meninas e meninos “prometidos” desde o nascimento. No ato do casório, era costume dos pais darem o dote às filhas. Se não podiam dá-lo por completo, doavam pelo menos a metade, como adiantamento da “legítima”, ou seja, da parte que a moça tinha direito a receber de herança, na morte dos genitores, dividida em partes iguais entre os filhos.

É esse o dado fundamental para explicar o papel econômico das futuras esposas. Os pais nem sempre calculavam com perfeição o dote da casadoira, muitos anos antes de morrerem. Mas o que realmente definia o tamanho e a composição do dote talvez fossem mais as negociações com a família do noivo e conveniências do momento do que a lógica da igualdade entre herdeiros. Assim, ao examinar a documentação colonial, os historiadores observaram muitos casos em que as filhas recebiam, no final de tudo, muito mais bens do que seus irmãos homens. E isso era visto com naturalidade: quando esses rapazes se casassem, também teriam os dotes de suas esposas.

Tanto que, quando se abria o inventário por ocasião do falecimento do pai ou da mãe, muitas filhas casadas não traziam seus dotes para acrescentá-los novamente aos bens familiares gerais a redividir, como mandavam as Ordenações Filipinas (leis portuguesas). Elas e seus esposos consideravam-se satisfeitos com o que já haviam recebido, e irmãos e genros não criavam caso. 

Logo, as noivas traziam mais bens para o casamento – na forma de dote – do que os noivos. Segundo as mesmas Ordenações, embora a administração coubesse aos maridos, eles tinham seus poderes limitados: eram proibidos de vender, alienar ou penhorar quaisquer bens de raiz sem o consentimento das esposas. Por mais variados que fossem em sua composição, os dotes traziam dois elementos básicos em maior quantidade: terras e indígenas. Esses eram os dois meios de produção fundamentais para que a nova família pudesse garantir a sobrevivência, numa época em que a grande maioria da população dependia obrigatoriamente dos pesados trabalhos ligados à terra. 

Uma vez casadas, essas mulheres adquiriam sua importância social básica, que era gerar filhos do marido, e também gerenciar ao lado dele as propriedades do casal, que deveria se firmar dali em diante como uma unidade econômica. Para o marido, havia mais outras vantagens: como homem casado ele ganhava mais respeito e credibilidade social. Assim, tinha chances de receber terras e participar do poder público, caso reunisse outros pré-requisitos exigidos por lei e costume. Muitos inventários desse período relacionam uma rede de mulheres credoras e devedoras, seja com homens, seja entre si. Curiosamente, quando a documentação da câmara municipal arrolava os comerciantes para fins tributários, só citava homens. Isso significa, no entanto, que elas comerciavam também, mas quem encabeçava as redes comerciais perante as autoridades municipais eram os maridos e os filhos.
Esse comércio derivava da produção excedente em suas terras.

Muitas famílias criavam, graças ao trabalho escravo, porcos, bois, vacas, cavalos, frangos, geralmente para o abate. Também tinham plantações e pomares. Trigo, cana, milho, mandioca, feijão, algodão, vindimas, marmeleiros, macieiras, tudo isso era comum ao universo dos paulistas. Todo mês, praticamente, desciam a serra do Mar até a região santista caravanas de comerciantes, com seus carregadores indígenas cheios de gêneros às costas. Foram descritos desde gêneros alimentícios in natura até aguardente, vinho, lingüiças, toucinhos, marmeladas, farinhas variadas, tudo beneficiado no planalto, nas propriedades paulistas.

Gerenciar o lar, portanto, extrapolava administrar simplesmente a casa, e passava por controlar todo um cotidiano produtivo nas propriedades, assim como toda a escravaria. Eram tarefas que as esposas realizavam ao lado dos maridos, ou mesmo sozinhas quando eles se ausentavam por longos períodos, nas bandeiras. Cuidavam de tudo, mesmo não sabendo ler e escrever; de qualquer forma, os maridos geralmente também eram analfabetos. Era desejável, portanto, que elas soubessem administrar e tomar decisões importantes, pois ficavam investidas de poder para representar seus maridos em pendengas judiciais, casar e dotar filhos. Isso lhes era assegurado pelas Ordenações e, acima de tudo, era um recurso necessário, por causa das freqüentes ausências dos pais e filhos mais velhos.

Nessas ocasiões, elas firmavam matrimônios que implicavam criar ou aprofundar alianças com outras famílias de destaque na vila, o que poderia lhes trazer muitas vantagens políticas e facilitar a sobrevivência. Também podiam ampliar relações comerciais, diversificar a produção doméstica, quitar dívidas ou fazer empréstimos, adquirir mais escravos, enfim, agir como seus maridos agiriam se estivessem em casa. Essa realidade parece ter inspirado um governador-geral da colônia em viagem por São Paulo, Antônio Paes de Sande, a assim descrever as paulistas em 1698: “As mulheres são formosas e varonis, e é costume ali deixarem seus maridos a sua disposição o governo das casas e das fazendas, para o que são industriosas”.

Viúvas empreendedoras
Quando enviuvavam, essas atribuições passavam total e irrestritamente para elas, se não resolvessem se casar novamente dali a um tempo. Podiam até obter terras. Nesse momento o matriarcado -ficava muito bem estabelecido em família, e muitas viúvas entravam no rendoso negócio das bandeiras, como associadas armadoras.

Equipavam os filhos, assim como providenciavam seu treinamento para a viagem aos sertões. Quando eles retornavam, metade ou mais dos índios cativos ficavam para elas, que podiam tanto vendê-los como colocá-los para trabalhar em suas propriedades. Por ocasião de seu falecimento, os ganhos acumulados pelas empresárias bandeirantes eram divididos entre seus herdeiros como o resto do espólio familiar.
Houve uma viúva que se tornou célebre não exatamente pela laboriosidade e senso administrativo, mas por seu ódio: Inês Monteiro de Alvarenga, conhecida como “a matrona” dos Pires. Foi uma das protagonistas de uma longa série de escaramuças com a família Camargo, episódio que colocou a vila de São Paulo e arredores literalmente em pé de guerra, nos idos de 1640.

A promoção da paz foi difícil tarefa, que envolveu até o governador-geral, o Conde da Autouguia, que em correspondência se referia à matrona como “a mais rija parte que houve nos casos que resultaram todos os descertos e tal contenda”. Este é um caso paradigmático, pois traduz o que se esperava, em matéria de comportamento, das esposas e mães, no período colonial: fidelidade e apego. Muito longe, portanto, da imagem tradicional de recato, placidez e submissão.

O célebre historiador de São Paulo e das bandeiras, Afonso de Taunay, certa vez afirmou que a matrona dos Pires seria uma “exceção à timidez feminil daqueles tempos”. Em poucas palavras, ele sintetizou o que algumas gerações de historiadores pensavam sobre as mulheres paulistas, e que expusemos nos princípios deste artigo. Mas, nas ocasiões em que elas ficavam investidas de poder, assumiam características de autoridade e sede de vingança, atributos essencialmente masculinos.

Sem participar de cargos públicos – o que lhes era vetado pela legislação -, podiam influir neles de maneira indireta, casando seus filhos convenientemente para que fossem elegíveis, ou mesmo fazendo pressão política. Viviam inseridas em estruturas tipicamente violentas, entre cativos submetidos à força, e até guerras familiares. Algumas vezes, usaram do poder conferido por sua ascendência familiar e seus bens para agir de uma forma vetada a outras mulheres mais pobres ou mesmo cativas. Isso não parece caracterizar a propalada “timidez feminina”.

Embora careça de mais estudos, o papel das mulheres no período das bandeiras paulistas era multifacetado e surpreendente. A chave para compreendê-lo melhor reside no fato de que seus pesquisadores trabalham com três níveis. O primeiro é o da vida que as mulheres levaram. O segundo é o das expectativas a que foram submetidas – de serem dóceis, submissas, honradas, fiéis, laboriosas, boas esposas e mães, engenhosas para administrar suas propriedades na ausência do marido – e que nem sempre atenderam. O terceiro, por fim, é o da idealização a que vários historiadores submeteram essas personagens históricas. Resgatar a valentia e a determinação que existiram ao lado da docilidade e obe-diência, concede a elas a garantia de sua presença na história paulista.

 

Por Madalena Marques Dias

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