Há espectadores que saem do teatro comentando a música executada numa determinada cena ou um gesto mínimo do ator. Outros se emocionam profundamente, mas são incapazes de lembrar de um fundo sonoro ou detalhe de figurino. Na definição de Tunica, a mais premiada criadora de trilhas dos palcos paulistanos, em cartaz com Salmo 91, esses são os espectadores “emocionais”.
Gente assim certamente ficou transida com o clima claustrofóbico de Zona de Guerra, mas não detectou, racionalmente, o papel da trilha criada por Eduardo Agni nessa sensação. O mesmo pode-se dizer de quem ficou com a respiração suspensa por espetáculos densos como Estação Paraíso, dirigido por Roberto Lage com trilha de Aline Meyer. Ou acompanhou fascinado a trilogia bíblica do Teatro da Vertigem, cujas trilhas foram criada por Laércio Resende.
Qual o papel da música no teatro? Apenas “reforçar” climas como muitos ainda pensam? Afinal, existe formação para atores, diretores e críticos, mas ainda não há uma escola específica para o criador de trilhas sonoras. O Estado resolveu “escutar” esses artistas e, para isso, enviou cinco perguntas sobre essa sonora arte para quatro entre os muitos profissionais reconhecidos da cidade. As respostas variaram na mesma medida em que são singulares as suas criações, mas todas ressaltam o caráter coletivo da atividade teatral ao valorizar o “diálogo” com os demais elementos como característica essencial de uma boa trilha sonora.
1 É comum pensar na trilha sonora como reforço de climas, atmosferas. É essa a função?
Tunica – Realmente é comum pensar como um reforço, mas não é sempre assim. Acho que nada no teatro é um reforço. Se alguma coisa está sendo reforçada é porque está mal colocada. Tudo no teatro é linguagem, uma combinação fantástica de várias linguagens para se dizer uma verdade só, que é o espetáculo teatral. Uma arte não reforça nada. Ela diz. Quando me perguntam com o que é que eu trabalho, eu respondo: “Com teatro!” Eu não respondo com música porque não é toda a verdade. Costumo explicar que um engenheiro não é um cenógrafo. Ele até pode ser um cenógrafo, depois que ele se tornar um cara de teatro. Um músico não faz uma trilha sonora se não for um cara de teatro. O importante no teatro é o teatro.
Aline – Sim, dentre outras! O que se sente ou percebe como clima ou atmosfera é uma noção inicialmente vaga e abstrata, porque decorre tanto do contexto mais “palpável” do texto em si como da proposta cênica, e muito da atuação do intérprete. É erro pensar que a trilha poderá criar esse clima por si só. Na condição de reforço, ela só vai cumprir bem sua função se a cena em seu todo (ambientação cênica, interpretação) estiver solidamente construída. Quando ela tiver de cumprir a função de “cenário”, ou seja, criar um ambiente físico no qual a cena acontece, é claro que podemos direcionar a sonoridade, por mais realista que se deseje, para um clima ou outro. Por exemplo, uma estação de trem: podemos reforçar um clima de abandono colocando os passos de uma só pessoa a distância, um apito mais longo, ou se for movimentada, acentuar a eventual ansiedade, atraso ou alegria de chegada de um personagem dosando a multidão, os avisos típicos, mais crianças ou não, etc.
Láercio – Pode ser esta uma dentre várias funções. Depende especialmente de que plano a trilha ocupa em determinado momento. Se ela é o foco, ou se está sob uma fala ou ainda acompanha uma movimentação. No caso do Teatro da Vertigem, uma vez que esta movimentação pode ser tanto de ator como de público, a trilha ainda pode ter a função de direcionamento. Como exemplo, desvia a atenção do espectador e o induz a caminhar na direção da fonte sonora.
Eduardo – Particularmente acredito que a função da trilha não seja apenas de reforçar, mas também de criar atmosferas e, até mesmo, de propiciar a instauração de um determinado clima necessário à plenificação da cena.
2 Uma boa trilha é aquela ouvida sem ser percebida ou ela pode chamar a atenção do espectador, destacar-se com elemento dramático?
Tunica – Existem as duas coisas. Isso não depende da trilha em si, mas do espectador. Às vezes, a trilha está tão integrada no espetáculo que é absorvida conjuntamente e o espectador acaba nem percebendo que há trilha sonora. Eu já vi acontecer muitas vezes. Você pergunta o que a pessoa achou da música de determinado momento e ela te pergunta que música era, que não se lembra, etc., e se você não cantarolar e lembrar a música pra ela, ela vai jurar que não tinha nada tocando nessa hora, apesar de considerar a cena maravilhosa e cheia de força e tensão. Esse é o espectador emocional, aquele que se deixa levar. Há também o espectador intelectual, que está lendo tudo o que está acontecendo. É quase um crítico. E, às vezes, a gente consegue os dois resultados: colocamos uma música que vai provocar o estímulo emocional necessário para a cena e que tem uma história política e social que pode agregar mais uma mensagem à cena. Se o espectador souber da história vai incluí-la, senão, já vai estar se resolvendo com a percepção emocional.
Aline – Uma boa trilha pode ser lembrada, sim, mas de preferência não isoladamente. É bacana quando comentam a música que tocava em determinada cena. Claro que não é suficiente ela destacar-se sozinha, pensando em trilha sonora enquanto função. Não podemos ceder à tentação de utilizar uma música que achamos maravilhosa, perfeita para algum momento, mas que não “faça a cena” com o ator. Quantas vezes isso já não aconteceu!!! Encontra-se uma melodia perfeita, sonoridade adequada, aprovada e apreciada por todos quando mostrada; aí a cena é ensaiada e o ator não a “toma” pra si, briga com ela. Isso não pode acontecer. A trilha é apenas mais um dos elementos que compõem a cena. Há parâmetros a serem inicialmente considerados (gênero, tempo histórico, escolhas de linguagem – realista, expressionista, narrativa, etc., etc.), e a compreensão total da cena, do que o diretor procura, ou seja, o respeito pela cena. Isso é o que mais conta, é o que faz um espetáculo em seu todo alcançar a platéia.
Laércio – Existe, a meu ver, uma grande diferença entre trilha para espetáculos ao vivo (teatro, dança, teatro-dança…) e trilha para espetáculos como cinema ou TV. No primeiro caso, a trilha é mais presente, mais perceptível, instigando um pouco mais a atenção do espectador, e, por conseqüência, passível de recordação. Esse fato se evidencia mais ainda caso a execução da trilha se dê com a presença de músicos ao vivo, pois assim o som se transforma quase em um outro personagem, com o qual o ator mantém um jogo teatral dinâmico.
Eduardo – Acho mais sensato produzir uma espécie de intersecção entre música e cena, criando uma coesão tão forte entre elas, ao ponto de não se perceber claramente onde uma termina e a outra começa.
3 O que você considera um erro em termos de trilha musical em teatro?
Tunica – Falando em alto nível, já que qualquer coisa errada no teatro aparece muito, eu acho errado, por exemplo, com algumas exceções, colocar música com letra durante cenas em que os atores estão “dando um texto”, pois isso atrapalha, já que ninguém pode ouvir dois textos ao mesmo tempo. Também não se podem ouvir duas músicas ao mesmo tempo, a não ser quando uma delas já é suficientemente conhecida. Assim, se alguém estiver dizendo a Ave-Maria você poderá colocar uma música com letra embaixo porque todo mundo conhece o texto da Ave-Maria, espero.
Aline – Querer destacar ou enfatizar todas as emoções de um personagem com a trilha, falar por ele.
Laércio – É complicado responder isto pois acredito não existirem normas absolutas que venham a definir o certo e o errado nesta relação. O que em princípio seria um erro pode sugerir soluções impensáveis e criativas para uma cena, deixando, portanto, de ser um erro.
Eduardo – Cair na melodramaticidade parece ser o erro mais grosseiro. O outro seria fazer uma música que salte para fora da cena ou que pareça estar sempre separada dela. Outra falha, que a meu ver é a mais corrente, é a falta de um cuidado no tratamento das sonoridades. Se os timbres não forem suaves, podem colocar os ouvidos num estado de resistência.
4 Cada vez mais o teatro sai das salas convencionais e ganha espaços inusitados: galpões, porões, rio, banheiro, presídio. Para além da acústica, de que forma o espaço interfere na criação da trilha?
Tunica – O espaço interfere em tudo no teatro, pois modifica a forma de compreensão do texto. É outra linguagem, não é?
Aline – De todas as formas, até para fazê-lo desaparecer, se precisar. Ele determina o tipo de sonoridade que você deve procurar, a intensidade de um clima ou de um ambiente necessário a uma ação. A função técnica de quem vai sonorizar o espaço também é fundamental. Você tem de experimentar tudo o que você acharia óbvio numa sala fechada. Tem de se jogar com os ruídos reais do entorno, contar ou não com eles. São escolhas feitas com critérios diferentes dos habituais.
Laércio – Talvez auxiliados por nossa memória ou por dedução, somos capazes de antecipar a sonoridade de um determinado espaço sem efetivamente ouvi-lo. Portanto, cada ambiente sugere um repertório sonoro imediato. Ao elaborar uma trilha para este espaço, tem-se como opção reforçar ou contrariar o universo sonoro sugerido. Os sons retrabalhados, de reconhecimento não imediato, podem estabelecer uma relação mais lúdica, mais dramática com o espectador, sem, contudo, distanciá-lo do foco central da cena.
Eduardo – Acho essas incursões muito instigantes e sempre procuro criar uma música cujas sonoridades pareçam ser uma extensão do ambiente. Se, por exemplo, o espaço tiver uma estrutura de metal, cuidarei de explorar timbres mais metálicos e por aí vai.
5 Qual o trabalho que mais satisfação lhe deu e por quê? Alguma expectativa frustrou-se?
Tunica – Na minha carreira, o trabalho que maior satisfação me deu foi O Concílio do Amor, de Oskar Panizza, direção de Gabriel Villela, que foi encenado nos porões do Centro Cultural São Paulo (tem a ver com a pergunta anterior, não é?) em 1988. O clima com o diretor e o pessoal do grupo Boi Voador foi o melhor possível e todos estavam empenhados em fazer “o” espetáculo. Foi um objetivo só, a produção de um espetáculo de muito amor, força e pesquisa em que tudo deu muito certo. A gente teve problemas imensos com a acústica daquele lugar, cheio de concreto e vidro, e conseguimos driblar todos com criatividade. Tudo que era um problema foi resolvido maravilhosamente bem, o que nos deu muita satisfação. Eram dois palcos entrelaçados com duas platéias ocupadas por um público só, itinerante durante o espetáculo. Quem viu há de se lembrar e entender o que estou falando; por outro lado, não sei se é compreensível para quem não viu, o que é uma pena. Foi inesquecível. Não me recordo de nenhuma frustração durante a minha carreira. Todos os espetáculos e eventos sempre tiveram o seu charme e as suas dificuldades; o que na vida não tem? Eu amo o meu trabalho e ele me completa com o que eu sou.
Aline – Um dos últimos trabalhos que me deu muita satisfação foi a montagem de o Diário dum Carroceiro, texto escrito por um não autor de teatro, ex-morador de rua, o Tião Nicomedes. Nesse trabalho, houve um empenho espontâneo e rico de toda a pequena equipe de criação (encabeçada por uma corajosa Iara Brasil) para que o ator único e solitário extraísse a dureza e a pungência poética do texto, o que ele realizou lindamente (Antonio Carlos Denigro). O que mais frustrou minha expectativa, eu não saberia dizer especificamente. Geralmente essa frustração se manifesta quando o espetáculo como um todo não acontece, não transmite nada. Ou então quando propostas foram desperdiçadas por uma operação de som malfeita, uma sonorização porca, um desleixo de acabamento em tudo, cenário, figurino, luz, rigor de interpretação, enfim o todo que dá o tom geral de um espetáculo, tendo ele sucesso de público ou não…
Laércio – Cada trabalho é tão diferente do outro em termos de exigências que se perdem os parâmetros de comparação. Tenho predileção pelas trilhas em que posso compor as músicas, nota por nota, ou quando trabalho os ruídos sob uma ótica musical. Entretanto, guardo uma recordação especial de uma trilha de ruídos que elaborei para Oberõsterreich, espetáculo do Antônio Araújo, anterior à trilogia. Acredito que a frustração real acontece quando um espetáculo, por qualquer razão, e em qualquer momento do processo, é interrompido; não consegue chegar ao palco.
Eduardo – É difícil escolher. Seria como perguntar a uma mãe qual dos seus filhos ela mais ama. Porém, num sentido mais amplo, gosto mais dos trabalhos que envolvem a minha participação desde o momento da concepção até a montagem. Gosto muito de acompanhar os ensaios e, às vezes, chego a contribuir com a criação de algumas cenas. Quanto a expectativas frustradas, não me lembro de nenhuma, felizmente.
Quatro Profissionais Apaixonados Pela Arte De Criar Sons Para Espetáculos Teatrais
LÁERCIO RESENDE, de 47 anos, mineiro de Cataguases, veio para São Paulo aos 24 anos. Ainda no curso de música, na USP, conheceu o diretor Antônio Araújo, para quem fez a trilha sonora de Oberõsterreich, um dos primeiros trabalhos do futuro fundador do Teatro da Vertigem. Mais tarde, Laércio criaria as trilhas de toda a trilogia bíblica do Vertigem. Sua mais recente criação para o palco foi para o espetáculo Labirinto D´Água, solo da atriz Raquel Ornellas, que ficou em cartaz no Tuca.
ALINE MEYER, paulista, de 43 anos, foi “obrigada” a operar o som num espetáculo infantil não patrocinado, no qual era uma espécie de faz-tudo, em 1988. “Acontece que a trilha sonora era da Tunica e de fácil não tinha nada.” Começou aí o fascínio por essa arte e o curso informal com Tunica, de quem se tornou assistente, até voar com suas próprias asas, numa trajetória hoje bastante reconhecida. São dezenas de trilhas no currículo, entre elas, O Sonho de um Homem Ridículo e Ricardo III, direção de Roberto Lage, e Assim com Rose , direção de Jairo Mattos.
EDUARDO AGNI, paulistano de 41 anos, é músico e produtor fonográfico. Como instrumentista, possui quatro CDs lançados: Kronos (Paradoxx-1998); Um Outro Silêncio (Eldorado-2000); Oriki (Trama-2003); e Presságios (Sonhos e Sons-2007). Como criador de trilhas, já fez incursões pela dança e programas de TV. Em teatro, criou as trilhas de Zona de Guerra, direção de André Garolli, e A Refeição, direção de Denise Weinberg.
TUNICA, como ela prefere ser chamada, santista que cresceu na cidade de São Paulo, de 57 anos, é mestra de mestres. Entrou para a Escola de Música da USP já pensando em fazer trilha para cinema. O ano era de 1968 e ela acabou envolvida no intenso movimento teatral da época. Começou a fazer trilhas para as montagens internas na Escola de Arte Dramática, dali saltou para o circuito profissional e nunca mais parou. Atualmente, são centenas de espetáculos no currículo, entre eles O Evangelho Segundo Saramago, direção José Possi Neto; Santidade e Caixa 2, ambas com direção de Fauzi Arap; e Vênus das Peles, direção de Mauricio Abud.
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Beth Néspoli
09/08/07