A Esquerda e a Cultura – Manuel Vázquez Montalbán

 Manuel Vázquez Montalbán

 

 

 

 

Enquanto patrimônio, a cultura é um longo rio cujas águas envolvem uma determinada geração de seres humanos e lhes transmite valores morais e estéticos, ideologias, história, códigos e símbolos… Enfim, um rico patrimônio elaborado por seus ancestrais que as novas gerações recebem quando existe um ponto de passagem e encontro possível entre este tesouro e o receptor dessa enorme oferenda.

Os revolucionários sempre questionaram o passado e estabeleceram uma certa distância em relação a este patrimônio, considerando-o como produto das antigas classes dominantes, derrotadas na luta pelo poder e que até ali detinham o controle da história.

Assim agiram na revolução francesa e na revolução de outubro: colocaram em quarentena a cultura herdada acusando-a de ser feudal, de pertencer à classe derrotada. Na revolução soviética, sem dúvida a mais radical de todos os tempos, acontece a famosa polêmica entre “cultura proletária” e “cultura de classe”. Alguns teóricos da revolução sustentam a tese da política de fazer tábula rasa e erradicar a herança de seus ancestrais e substituí-la pela cultura da nova classe proletária.

 

A “CULTURA HUMANA”

Leon Trotsky, com uma vontade indomável de salvar o patrimônio cultural, coloca-se pessoalmente contra essa posição. E afirma que a cultura, exatamente por causa da mudança política, deixava de ser uma “cultura burguesa” para se tornar uma “cultura humana”. Portanto, a revolução deveria agir de maneira que seus valores fossem assimilados pelo conjunto do povo para iniciar uma nova era histórica.

Eis o início da solução de um problema. O caráter reacionário do patrimônio cultural não está no patrimônio, mas na maneira como ele é usado pelas forças reacionárias e a impossibilidade de ele ser assumido pela maioria da sociedade. Entretanto, é possível mudar isso ao utilizar simples medidas como criar bibliotecas para a expansão do hábito da leitura; um sério programa de vulgarização das artes que favoreça sua prática e sua difusão; uma política que derrube as barreiras da concepção de cultura como mercadoria que impede um determinado setor social de usufruí-la.

Em seguida, temos a cultura como consciência, sua forma mais onipresente. A partir do instante em que estejam conscientes de sua situação e de suas relações com seus congêneres e com a natureza, todos os seres humanos têm uma cultura. Desta constatação emana uma série de concepções culturais. Tudo aquilo que é consciência do ser, da existência, das relações com o mundo e com o outro. É, por isso, que ousar fazer uma distinção entre aqueles que têm e aqueles que não têm cultura é dar prova de uma arbitrariedade e de um analfabetismo intoleráveis.

 

CULTURA: MODOS DE USAR

Toda pessoa capaz de ter consciência daquilo que ela é e do que ela faz e, sobretudo, do papel que tem nas relações com o outro, possui uma cultura. Ninguém pode ser excluído do reinado da cultura. Diante destas duas concepções – cultura como patrimônio, cultura como consciência – está o tradicional exercício de duas políticas, duas tentativas de manipulação política.

Por um lado, a política cultural da reação consiste em açambarcar a cultura-patrimônio e a culturaconsciência, incorporá-las a um conjunto de verdades estabelecidas e fazer do acesso à cultura uma maneira de se integrar, de estabelecer um processo de comunhão com a ordem estabelecida. Esta política, na melhor da hipóteses, fez da cultura um meio de integração, mas também propicia a sua mutilação, permite o seu controle ditatorial, quando não a sua destruição, a sua falsificação ou a sua mistificação, sobretudo em períodos fascistas.

Em geral, as forças progressistas partem de uma tomada de consciência e, portanto, de uma posição crítica que questiona a ordem estabelecida e tem como propósito modificá-la. Isto se aplica à cultura como consciência. Por outro lado, no que se refere à cultura-patrimônio, a esquerda tem evitado dela se assenhorear para tentar enquadrá-la por suas próprias motivações.

 

ASSIMILAÇÃO E CRÍTICA

Toda política cultural da esquerda deveria, primeiramente, passar pela assimilação, sem limite, da cultura patrimonial. Em seguida, pela promoção do papel transformador da consciência crítica. E finalmente, pela análise da maneira pela qual uma política cultural progressista deve considerar a promoção de uma consciência de classe como uma forma superior de cultura.

Ter consciência que uma política cultural deve considerar o grau de desenvolvimento da dinâmica histórica dentro de uma concepção global de progresso obriga a esquerda fazer um esforço gigantesco: o questionamento do conceito de progresso.

Cornelius Castoriadis afirmava que nossa época deveria escolher entre “socialismo ou barbárie”. Ao impor essa escolha, coloca em relação duas culturas diferentes, duas concepções opostas da relação histórica que engloba os sistemas de organização da vida, de produção, das relações humanas. Um baseado no lucro, no sucesso das conquistas materiais para as minorias dirigentes e os setores dominantes. O outro baseado no socialismo, estabelecido como racionalização diante dessa barbárie e criando novas relações humanas, uma nova cultura, a possibilidade de uma nova autonomia do homem na realidade. O socialismo se apresenta como uma verdadeira encruzilhada para onde convergem todos os parâmetros que dão sentido à circulação da cultura.

 

A ESSÊNCIA DA CULTURA

T.S. Elliot, excelente poeta de direita, descreveu o que significa cada situação cultural. Para o homem contemporâneo, compreender que o fato cultural se perpetua, que continua a partir de uma troca dialética entre a tradição e a revolução, é a própria essência da cultura. A cada época corresponde uma tradição cultural que se choca com a consciência crítica do momento; e deste choque entre o patrimônio cultural que herdamos e a consciência crítica emana a possibilidade de uma continuidade. Elliot identificou este mecanismo na compreensão da cultura e nós devemos agradecê-lo por isso.

Defendendo uma cultura relacionada ao progresso, as forças progressistas, em geral, assumem a tradição e, em conseqüência, o patrimônio cultural; e ao se colocarem a favor da revolução, estabelecem uma consciência critica em relação a esse patrimônio cultural.

Mas para chegar até isso, devem oferecer ao mundo uma visão baseada em uma idéia fundamental, próxima da escolha “socialismo ou barbárie”: a necessidade de sobreviver às tendências destrutivas.

Uma vez ganha a luta pela sobrevivência – primeiro objetivo – uma cultura da igualdade, que não buscará uniformizar, mas assegurar a satisfação das necessidades, entre elas as culturais, de todos os seres humanos, será o segundo objetivo.

 

LUTA CONTRA A ALIENAÇÃO

O terceiro objetivo será uma cultura de liberação, de luta contra a alienação, não no sentido marxista (segundo a qual o homem desprovido dos meios de produção não possui aquilo que ele fabrica, fica afastado do produto que criou), mas no sentido mais amplo do termo: a liberação das tendências aos cultos negativos, às comunhões obscurantistas que anulam toda a capacidade crítica. A desalienação no sentido da liberdade de condutas coletivas como também individuais no campo da política, moral ou sexual.

O quarto objetivo é a reivindicação da paz como valor cultural supremo. É indispensável denunciar a guerra como valor ideológico contra-revolucionário. A ameaça de guerra busca estabelecer uma cultura de medo, que paralisa as consciências, fazendo-as mais conservadoras.

A reivindicação da paz, ao contrário, é revolucionária porque é a favor da mudança. A paz aposta nas energias criativas do homem, na sua liberdade de expressão, de realização, de transformação. As forças do progresso são majoritárias e quando forem conscientes, os partidários de uma ordem arcaica ficarão isolados. A esquerda deve lutar em duas frentes. Defender sua própria consciência e lutar contra esse medo que procuram nos transmitir como valor cultural supremo. Para que os patrimônios culturais permaneçam à disposição da imensa maioria.

Tradução: Celeste Marcondes. Publicado na versão brasileira do jornal Le Monde Diplomatique (www.diplo.com.br)

 

Uma cultura de luta

Manuel Vázquez Montalbán foi um grande escritor e militante que lutou permanentemente contra as injustiças e desigualdades sociais. Nascido em Barcelona, em 1939, tornou-se um dos maiores expoentes contemporâneos da literatura espanhola Morreu no dia 18 de outubro de 2003. Em homenagem a seu talento e seu compromisso político, publicamos este texto inédito, parte de uma Conferência realizada em Alicante, Espanha, em 2001. Montalbán participou ativamente da oposição ao regime ditatorial de Franco e chegou a ser condenado a passar três anos no cárcere, em 1962. É autor de romances, alguns traduzidos para o português como Autobiografia do General Franco, Os Mares do Sul, O Quinteto de Buenos Aires, entre outros. Na definição do subcomandante Marcos, Don Vázquez Montalbán “não era nosso amigo, era nosso companheiro.”

 

 

Manuel Vázquez Montalbán

 

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