Em 10 de abril último, o escultor Emanoel Araújo pediu demissão do cargo de secretário da Cultura da cidade de São Paulo, após permanecer pouco mais de três meses na função. Vinte e três dias depois, em 3 de maio, a secretária de Estado da Cultura, Cláudia Costin, toma uma decisão igual e também entrega o seu cargo ao governador Geraldo Alckmin. Na mesma semana, os jornais trazem a notícia sobre a “quase” demissão de nada menos que o ministro da Cultura, Gilberto Gil, que avisou: se os graves problemas relacionados com o bloqueio de verbas na sua pasta não forem resolvidos, vai para casa. A crise ainda não teve solução. É útil realçar que estamos falando dos titulares da cultura da maior cidade e do maior Estado do País, além do mais alto dirigente da cultura brasileira. Imaginem esse quadro em outro setor da vida nacional.
Claro que não há conexão direta entre os três episódios. No entanto, um olhar mais abrangente revela que esses eventos terminam ligados pelo mercúrio, pelo fio vermelho que sobe rápido, encadeando-os como se fossem três pontos na escala progressiva do termômetro. Febre alta no organismo.
Na condição de secretário da Cultura, Emanoel Araújo não poderá ser julgado, uma vez que permaneceu apenas 100 dias no cargo. Mas será difícil alguém lhe tirar o título de melhor ex-secretário da Cultura que esta cidade já teve. Na sua saída, entregou ao prefeito José Serra uma carta aberta que, na minha opinião, constitui-se no mais importante documento que o meio cultural produzira nos últimos anos. Pode-se discordar de várias posições de Araújo enquanto ele esteve à frente da secretaria. Pode-se discordar até de alguns trechos de sua carta, mas ninguém poderá lhe negar a importância do gesto, ao vir a público com uma franqueza rara na vida brasileira, expor as reais motivações de seu afastamento que podem ser resumidas a dois pontos: ausência de meios para a realização do seu trabalho e o descaso com o qual a problemática da cultura estava sendo tratada. Apesar dos constrangimentos naturais dessa situação, Araújo prestou um valioso serviço à classe ao tornar público esse debate, abandonando a cortesia protocolar. Educada, mas, às vezes, também pusilânime.
Infelizmente, o descaso com a cultura não é uma exclusividade paulistana. No final do ano passado o governo federal divulgou o Orçamento Geral da União e ele continha uma boa notícia para a o Ministério da Cultura: R$ 480 milhões somente para execução de programas – fora a verba de custeio – o que no total equivaleria a 0,6% do orçamento geral, participação que jamais tivera. A notícia foi, merecidamente, festejada. Em fevereiro deste ano, porém, o governo divulga um contingenciamento de 57% para essas verbas, impondo o maior corte que a pasta já sofrera.
Ou seja: a cifra recorde para a cultura que estava no papel, na prática, recebeu uma tesourada também recorde da área econômica. Assim, o primeiro recorde foi engolido pelo segundo e, de recorde em recorde, o ministro Gil terminou com a menor verba que o MinC já dispôs em muitos anos, marca negativa que a recordista pasta vai acumular com outra que já detinha, o de mais baixo orçamento da Esplanada dos Ministérios, já que a pequenina pasta da Pesca não conta por ser, oficialmente, uma secretaria com o seu orçamento vinculado à Presidência da República. São dados e fatos inacreditáveis.
Examinemos a figura de linguagem “herança maldita”, que se tornou popularíssima entre os nossos políticos nos últimos anos. Coisa curiosa se passa com essa expressão, só entra em circulação no período pós-eleitoral. Jamais se ouve, antes do pleito, referência à maldição inexorável que se abaterá sobre o infeliz vencedor do sufrágio. Porém, após a apuração do último voto essas duas palavrinhas surgem com ímpeto e se instalam tenazmente no discurso do candidato vitorioso e, infalivelmente, chegam na companhia de uma outra expressão, também velha conhecida da classe artística: “o cobertor curto”. De múltiplo uso e campeãs do desaperto, essas expressões, em dobradinha, se tornaram uma espécie de canivete suíço da retórica política brasileira, capaz de quebrar todos os galhos.
Recapitulemos os últimos lances do kit “herança maldita/cobertor curto” na política brasileira: no plano federal, desde 2003 o desafortunado herdeiro é o PT do presidente Lula, e o maldito, claro, o PSDB de FHC. Ano passado, na cidade de São Paulo, ocorreu uma inversão de posições. No papel de infeliz herdeiro, estréia o PSDB, na pessoa do prefeito José Serra. Para viver o papel de maldito, lá estava o PT de Marta Suplicy. Agora, o que nunca varia nesse tortuoso enredo é quem termina fora do famigerado “cobertor curto”, seja qual for a esfera de governo. Seja qual for o partido no poder.
Ao contrário do que possa parecer, não estamos aqui tratando de questões financeiras. É um equívoco enxergar na falta de verbas a causa central dos infortúnios do setor artístico-cultural. A falta de verbas desempenha, nessa triste cena, apenas o papel da febre. Um papel coadjuvante, portanto. A verdadeira protagonista desse drama é a lastimável mentalidade brasileira.
Paulo Pélico é dramaturgo e produtor teatral