A Ciência e Cultura Brasileira de Luto

 

CESAR LATTES, 1924-2005

O físico Cesar Lattes, um dos maiores cientistas brasileiros, faleceu em Campinas em 8 de março, aos 80 anos. Ele inscreveu seu nome na história da ciência como um dos descobridores de uma partícula atômica – o méson pi.

O curitibano era também um grande contador de histórias

Cesar Lattes é um dos maiores cientistas brasileiros. O curitibano é conhecido mundialmente como um dos responsáveis pela descoberta do méson pi, a partícula subatômica que garante a coesão do núcleo do átomo. Mas o único físico brasileiro citado na Encyclopaedia Britannica é extremamente modesto. Quando fala sobre essa menção, Lattes não a atribui a um mérito seu, mas a um erro da publicação.

Lattes é simpático, risonho, brincalhão. No Hotel Paissandu, seu favorito no Rio de Janeiro, ele recebeu a Ciência Hoje on-line para entrevista e se revelou um grande contador de histórias. A conversa sobre a descoberta do méson pi, sua passagem pelas Universidades de Bristol e Berkeley e sua carreira foi toda pontuada por divertidos casos por que passou. Ele contou, por exemplo, que na viagem para a Bolívia em que provaria a existência do méson pi, recebeu a recomendação de voar pela British Airways. Lattes contrariou a indicação e preferiu a Panair, por motivos banais: o avião era mais confortável, e a comida, mais gostosa (“eles serviam filé mignon”, lembra). Lattes soube mais tarde que o avião da British que o levaria havia caído, sem deixar sobreviventes.

Entre um e outro cigarro com o filtro arrancado, Lattes, que recebeu da Universidade de São Paulo (USP) o título de doutor Honoris causa, se diz contra a pós-graduação. “Grandes físicos como [Niels] Bohr e [Wolfgang] Pauli fizeram importantes descobertas antes dos 25 anos, e hoje um físico só acaba sua formação com 30 ou 40”, defende. Essa postura, porém, não impediu que Lattes participasse da fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e de integrar a comissão que fez a lei de criação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).

Questionado sobre sua religião, Lattes se disse ao mesmo tempo católico apostólico romano, muçulmano e cristão ortodoxo – mas principalmente judeu. Ele não vê nenhuma contradição nisso: “boa vontade é minha religião”. O físico gosta de ler a Bíblia, de onde tirou uma frase de Salomão que sempre cita: “a sabedoria não entra de jeito algum na alma malvada”. Lattes lamenta que o mesmo não aconteça com a ciência, que chegou a produzir a bomba atômica. Ele não vê com bons olhos as experiências com transgênicos (“os alimentos naturais têm três bilhões de anos de Procon!”) e com a clonagem, em especial a de seres humanos (“há meios tão melhores de se fazer isso…”).

O reconhecimento de Lattes não é restrito ao meio acadêmico: o físico já foi citado até por Cartola, no samba “Ciência e arte”. Mas ele só soube do fato recentemente, quando Gilberto Gil lhe pediu que corrigisse as letras e escrevesse uma introdução para seu CD Quanta. Na carta que apresenta o disco, Lattes reconhece similaridades entre duas paixões de sua vida: “a ciência é uma irmã caçula (talvez bastarda) da arte”. Cesare Mansueto Giulio Lattes nasceu em Curitiba a 11 de julho de 1924, filho de Giuseppe Lattes e de D. Carolina Maria Rosa Lattes. É casado com D. Martha Siqueira Neto Lattes, tem quatro filhas e nove netos. Fez seu estudos, primários na Escola Americana de Curitiba entre 1929 e 1933, e secundário no Instituto Médio Dante Alighieri, em São Paulo, de 1934 a 1938. Ingressou no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia e Ciências e Letras da USP, concluindo o Bacharelado em 1943; recebeu desta Universidade o Título de Doutor Honoris Causa em 1948. É Professor Titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e da Universidade Estadual de Campinas. Sua carreira científica teve início em meados dos anos 40, no então Departamento de Física da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, quando publicou trabalho científico sobre a abundância de núcleos no universo, sob a orientação de Gleb Wataghin. Desde então teve seu nome ligado a resultados científicos da maior repercussão e a iniciativas das mais fecundas para o progresso da ciência no Brasil e na América do Sul. A descoberta do píon em 1947, em colaboração com G.Occhialini e C.F.Powell, foi o marco em sua carreira que se fez acompanhar das mais significativas conseqüências. De um lado a descoberta revelava a partícula, presumivelmente, responsável pelo comportamento das forças nucleares. O alcance desse feito ultrapassou as fronteiras da ciência fundamental dadas as expectativas que então revestiam qualquer ampliação de conhecimentos nesses domínios; o desenvolvimento da energia nuclear, no pós-guerra, demandava formulações que o aliviassem do empirismo oneroso e, muitas vezes, arriscado com que vinha se fazendo. A produção artificial daquela partícula, em 1948, ainda por Lattes mas agora em associação com Eugene Gardner, no recém-construido sincro-ciclotron da Universidade da Califórnia, em Berkeley, marcou o início de formidável corrida para a construção de aceleradores mais e mais potentes que caracterizou a física nuclear do pós-guerra. De outro lado, amplas aberturas no terreno da institucionalização da ciência, no Brasil e na América do Sul, acompanharam essa descoberta, ligadas diretamente ao regresso e permanência definitiva de Lattes no continente sul-americano. Lidera um grupo científico que em 1949 criou o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Instituto que polarizou e agasalhou iniciativas como a da formação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, a da Escola Latino-Americana de Física, o Centro Latino-Americano de Física, enquanto se destacava pela atividade de pesquisas em nível internacional, pelas medidas de modernização dos currículos de ensino da física e as de formação do pessoal que constitui hoje parcela ponderável da liderança científica atuante na física brasileira. No mesmo ano, junto com colegas bolivianos, cria em La Paz, as condições para o que viria a ser o Laboratório de Físicas Cósmicas, a partir de uma velha estação de observações meteorológicas, onde obtivera os registros dos eventos que levaram à descoberta do píon. Cedo esse Laboratório se transformava em centro científico do maior interesse internacional, abrigando em suas dependências equipamentos e cientistas de todas as partes do mundo que ali escreveram importantes capítulos do conhecimento sobre a radiação cósmica. Ambas as instituições resistiram aos duros testes do tempo, tendo o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas sido absorvido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do governo brasileiro, e o Laboratório de Chacaltaya, hoje Laboratório de Física Cósmica, pela Universidad Mayor de San Andrés, constituindo o principal organismo de seu Instituto de Física. Sua atuação no Brasil durante os primeiros anos teve, também, papel importante na catalização dos esforços que levaram finalmente à criação do Conselho Nacional de Pesquisas – atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – em 1951. Pela criação de um órgão com suas características lutava de há muito a comunidade científica brasileira, constituída em sua maioria por pesquisadores nas ciências biológicas; a eles vieram se aliar grupos de interessados no desenvolvimento da tecnologia nuclear, mas sem poder de transação com a burocracia, face à escassa tradição e à falta de autoridade científica reconhecida naqueles domínios. O Conselho Nacional de Pesquisas deu novo impulso à pesquisa científica e tecnológica no Brasil, tendo contado com Lattes na composição de seu primeiro Conselho Diretor. Diretor Científico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas desde a fundação, e principal consultor científico nos primeiros anos do Laboratório de Chacaltaya, deixa esses encargos em 1955 para uma curta temporada nos Estados Unidos. Recusando convites os mais honrosos, como o de substituir o falecido Enrico Fermi na chefia do seu Instituto na Universidade de Chicago, retorna ao Brasil dois anos depois para criar, na USP, um laboratório para estudos de interações a altas energias na radiação cósmica. Participa, em 1962, do grupo pioneiro que organizava a Universidade Estadual de Campinas, transferindo-se para essa cidade no ano seguinte e dando início à formação de seu Instituto de Física. Em curto período essa universidade conquistou elevado conceito nos meios universitários brasileiros e, em particular, seu instituto de física é creditado como dos melhores no Brasil, cercado de grande prestígio e projeção internacional. Não obstante a singular repercussão da descoberta do píon, as contribuições não esgotam, absolutamente, nesse memorável feito. Dono de rara versatilidade seus trabalhos incluem contribuições do maior mérito em variados campos da física moderna, desde pesquisas teóricas sobre as origens e abundância de espécies nucleares no universo e eletrodinâmica clássica, até desenvolvimentos instrumentais, na área das emulsões nucleares, estes últimos cercados de auspiciosas aberturas; como membro do grupo de Bristol, na segunda metade dos anos 40, é participante da brilhante seqüência de desenvolvimentos que culminaram na elevação das emulsões nucleares, antes precários dispositivos de registro ionográficos, à categoria de instrumentos de medição. Esses trabalhos não somente viabilizaram a descoberta do píon,como propriedades físicas. A partir de 1962 lidera a reunião de grupos brasileiros e japoneses num projeto de longo alcance sobre interações a altas energias na radiação cósmica: a Colaboração Brasil-Japão. Desde então os resultados pioneiros desse grupo, em domínios então fora do alcance dos mais potentes aceleradores em operação ou em projeto, ganharam elevado prestígio nos meios científicos internacionais, considerados como promissoras aberturas para expansão das fronteiras da física moderna.

Membro da Academia Brasileira de Ciências, da União Internacional de Física Pura e Aplicada, do Conselho Latino-Americano de Raios Cósmicos, das Sociedades Brasileira, Americana, Alemã, Italiana e Japonesa de Física, entre outras associações, ocupou numerosas vezes posições de conselheiro, quando contribuiu com sua experiência e visão pioneira para a formulação de políticas e diretrizes de ação. Tem sido alvo de repetidas homenagens por parte de organizações oficiais e privadas no Brasil e no exterior e inúmeras vezes foi escolhido paraninfo ou patrono de contigentes de novos estudantes, formandos em ciências exatas e aplicadas. Entre prêmios, medalhas e comendas, recebeu, no Brasil, o Prêmio Einstein de 1950, o Prêmio Fonseca Costa, do CNPq, em 1958, a Medalha Santos Dumont em 1989, a Medalha comemorativa dos 25 anos da SBPC e placa comemorativa dos 40 anos dessa sociedade, o símbolo do Município de Campinas, em 1992, e muitos outros. Orgulha-se, particularmente, da iniciativa de dezenas de municípios brasileiros que lhe deram o nome a escolas municipais, bibliotecas, praças, ruas. Sua atuação no continente sul-americano foi reconhecida pelo governo boliviano, que lhe concedeu o título de cidadão honorário daquele país, em 1972, pelo governo da Venezuela, que lhe conferiu a comenda Andrés Bello em 1977, e pela Organização dos Estados Americanos, que lhe outorgou o prêmio Bernardo Houssay, em 19788; em 1987 recebeu o Prêmio de Física da Academia do Terceiro Mundo. Pessoa simples, oferece o calor de sua intimidade indistintamente a quantos o procuram; vê com acentuada preocupação os usos destorcidos dos conhecimentos científicos no mundo moderno e manifesta suas opiniões sem reverências, à revelia de preconceitos e interesses menores. Observa com o píons que descobriu. Esta será, talvez, a maior gratificação que espera receber de sua vida devotada ao progresso da ciência e combate ao subdesenvolvimento.

 

 

 

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