Quando a vida liga de volta: o reencontro com um amigo que venceu o impossível.
Recebi o telefonema numa tarde quente deste novembro — dessas em que a memória parece se esticar, preguiçosa, entre um pensamento e outro. Do outro lado da linha, a voz conhecida de Raymundo de Souza: meu parceiro de cena de filme do querido Mannaos Aristides, meu amigo de estrada, de palco e de arte.
Há vozes que atravessam o tempo como se carregassem luz própria; a dele é uma delas.
Ele é de Santo André, onde se criou; eu, em São Caetano do Sul — no ABC paulista. A arte nos aproximou. E desde então seguimos, lado a lado, compartilhando caminhos que só quem vive de emoção e ofício entende.
Raymundo tem 72 anos, mas carrega uma juventude teimosa no timbre, como se dissesse ao mundo que a vida ainda o chama para dançar. E chama mesmo. Desde 1979, quando estreou em Cara a Cara, até suas passagens marcantes pela Globo, pela Record, pelo teatro, pela vida — Raymundo sempre esteve ali, firme, presente, de corpo inteiro. Dimas de Sinhá Moça, Jorge Adib de Cabocla, os homens que ele interpretou ficaram no imaginário brasileiro, mas nenhum deles é tão forte quanto o próprio Raymundo.
O que a maioria não sabe é que, em 2018, ele encarou um antagonista que roteiro nenhum ousaria escrever. Um acidente de moto, uma espera que não deveria ter acontecido, uma perna que necrosou — e a vida que, em resposta, precisou ser reconstruída em camadas, pontos, enxertos, coragem. Sessenta e cinco cirurgias. Oito meses de hospital.
Como se não bastasse ser ator, Raymundo teve de interpretar a si mesmo num papel áspero, duro: o de quem luta para permanecer, para voltar a andar, a sonhar, a abraçar. E venceu.
Enquanto ele me contava tudo isso em poucas palavras — porque os fortes quase sempre falam baixo — eu ouvia, em silêncio, a grandeza escondida nos intervalos. Aquele homem que vi tantas vezes diante das câmeras, agora era, para mim, uma espécie de farol.
Falou-me também de projetos. Ele sempre tem um. Do filme Horizonte, rodado em 2024. Da reprise de Terra Nostra. Da vida que insiste, novamente ela, chamando-o para dançar. E então veio o que mais me tocou:
— Vou passar o fim de ano em Camboriú. Na volta, passo por Curitiba pra te ver.
Fiquei com o coração cheio. Há reencontros que parecem promessas de cura. Há amizades que resistem ao tempo como resistem as árvores às tempestades: firmes, discretas, profundas.
Quando desliguei, fiquei olhando para o telefone ainda quente na mão. Pensei na sorte que é ver um amigo renascer tantas vezes e, ainda assim, ser o mesmo — sensível, generoso, vibrante.
E percebi que, de alguma forma, aquele telefonema não era apenas um aviso de visita.
Era um lembrete silencioso de que alguns vínculos, por mais que a vida tente, não se rompem. Nunca.
E que eu, sim, ficarei feliz com o reencontro. Muito.
Cláudio Ribeiro
Jornalista – Compositor
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