Um episódio mal conhecido da história republicana ocorreu em 1954 mas ficou eclipsado pela crise final do governo de Getúlio Vargas, que terminou em 24 de agosto daquele ano, com o suicídio do presidente.
Por José Carlos Ruy
Trata-se da tentativa de impeachment contra o presidente Getúlio Vargas, ocorrida em 1954, e que fez parte da investida da direita contra mudanças políticas e sociais no Brasil.
Foi a primeira vez em que se usou a Lei de Impeachment (Lei nº 1.079/1950) contra um presidente da República. Aquela lei, adotada no último ano do governo direitista do marechal Eurico Gaspar Dutra (foi publicada em 10 de abril de 1950) e pode-se supor que, naquela conjuntura (em que era provável vitória de Getúlio Vargas nas eleições presidenciais marcadas para 3 de outubro daquele ano) foi feita justamente para permitir a remoção do poder de um presidente que ameaçasse os interesses e privilégios dos setores mais reacionários da classe dominante.
A candidatura de Vargas naquele ano era certa, e a direita temia sua vitória (como, hoje, teme a vitória de Lula em 2018). A Lei do Impeachment foi adotada no mesmo contexto em que o jornalista e líder direitista Carlos Lacerda escreveu, no jornal Tribuna de Imprensa, a frase que melhor exprime o espírito golpista dos setores reacionários contra a estabilidade política e contra os governos progressistas e avançados, ontem e hoje: Vargas “não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
A crise do segundo governo Vargas (1951-1954) foi das mais sérias da história da República. O embate entre a direita (aqueles que, em nossos dias, são chamados neoliberais) e os desenvolvimentistas liderados por Getúlio Vargas foi intenso – e mortal.
As acusações feitas pela direita (e pelo jornal O Globo que, como hoje, era porta-voz militante da conspiração golpista) eram semelhantes às que, em nossos dias, são feitas contra a presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Getúlio Vargas era acusado por ter nomeado João Goulart para o ministério do Trabalho e concedido, no início de 1953, um aumento de 100% no salário mínimo; de planejar implantar uma “república sindicalista”; de conceder apoio financeiro do Banco do Brasil ao jornal Última Hora, de Samuel Weiner.
O aumento no salário mínimo provocou de imediato a fúria de militares que, em fevereiro de 1953, divulgaram o chamado Manifesto dos Coronéis, alegando, inclusive, que o aumento do salário mínimo significava desprestígio para os militares e “uma aberrante subversão de todos os valores profissionais”, pois sua equiparação ao salário de um oficial prejudicaria “qualquer possibilidade de recrutamento, para o Exército, de seus quadros inferiores”. Qualquer semelhança com reações atuais de setores conservadores contra a presença de empregadas domésticas e outros trabalhadores em shoppings, aviões, universidades, etc., não é mera coincidência!
Também acusavam Vargas, em 1953, de agir para unir a América do Sul numa frente nacionalista (mais precisamente o que então se chamava de ABC: Argentina, Brasil e Chile) para fortalecer a soberania regional e permitir a estes países melhores condições para enfrentar as investidas do imperialismo dos EUA. De novo, qualquer semelhança contra as diatribes da direita contra o Mercosul não é mera coincidência.
Mas a acusação feita contra Vargas que fundamentou o pedido de impeachment contra ele atendia diretamente aos interesses da mídia monopolista (principalmente O Globo e os Diários Associados, de Assis Chateaubriand) – Vargas teria apoiado o jornalista Samuel Weiner com empréstimos do Banco do Brasil que permitiram a criação do revolucionário diário Última Hora, um marco inovador na imprensa brasileira, que ameaçou diretamente a mídia monopolista.
Cresciam então as denúncias do chamado “mar de lama”, contra Getúlio. E o inefável Carlos Lacerda, através da Tribuna da Imprensa, e de O Globo, era campeão nessas mentiras contra Getúlio Vargas.
O processo de impeachment contra Vargas foi apresentado à Câmara dos Deputados em 1953. O autor da proposta foi Wilson Leite Passos, militante de extrema-direita da UDN (União Democrática Nacional), antepassada do PSDB de hoje. Passos, que mais tarde foi deputado pela UDN, era raivosamente anticomunista; orgulhava-se de ser dono de uma pistola alemã Walther, que teria pertencido a um oficial alemão durante a 2ª Grande Guerra e devia ter matado “muito russo, muito comunista”, disse Passos muitos anos depois numa entrevista ao jornalista Mário Magalhães.
O pedido de impeachment foi votado em 16 de junho de 1954, numa sessão com a participação de 211 deputados –136 votaram contra ele, a 35 votos, e 40 se abstiveram.
A crise não terminou na derrota do impeachment. Ela prosseguiu naquele ano, com sucessivas e crescentes acusações contra Getúlio Vargas e tentativas de afastá-lo do poder – por um golpe ou renúncia do presidente. Ontem, como hoje, o vice-presidente João Café Filho se envolveu desavergonhadamente na conspiração golpista. E a crise acabou – ou melhor, foi adiada por uma década – com o suicídio de Vargas na madrugada de 24 de agosto de1954.
Mas esta já é outra história. Trágica e que, hoje – passados mais de 60 anos – não se repetirá. A direita, descendente direta dos golpistas de 1954 e 1964, será derrotada e o Brasil vai consolidar a democracia e avançar no rumo da igualdade e das conquistas sociais há muito exigidas pelos brasileiros.
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