Em suas constantes viagens profissionais, o auditor Rui Torneze, filho de um trompetista amador, sempre levava na bagagem, além de roupas e utensílios, seu violão. “Nessa brincadeira de rodar o país, principalmente o interior, conheci a cultura da viola”, conta o músico. De formação clássica, ele foi se aproximando do instrumento que via e ouvia por todo canto que passava. E aprendeu por observação. “Ia anotando, copiando, arremedando os outros.” Passou do violão (seis cordas) para a viola (cinco cordas duplas). Hoje, Rui é maestro da Orquestra Paulistana de Viola Caipira, que acaba de completar 18 anos e é uma das dezenas que se espalham pelo Brasil. Trazida da Europa, a viola já é parte inseparável da cultura popular.
“A viola é o coração da música brasileira”, definiu a pesquisadora Rosa Nepomuceno em seu livro Música Caipira: da Roça ao Rodeio. “Se o primeiro brasileiro, até que um E.T. prove o contrário, foi o índio, o segundo foi o caipira, garrado na viola.” E a mistura histórica, de povos e gêneros, fez da viola um instrumento da terra.
“Apesar das origens lusitanas, o que se faz hoje aqui é exclusivamente brasileiro”, afirma Rui.
João Paulo: “Tião Carreiro foi um dos primeiros a ver a possibilidade da viola não só como instrumento de acompanhamento, mas também para fazer solo”
“Os 500 anos que a viola percorreu aqui foram suficientes para ganhar uma cara completamente diferente de Portugal”, acrescenta outro violeiro, João Paulo Amaral, defensor do primeiro mestrado sobre viola caipira no país, em pesquisa sobre Tião Carreiro (1934-1993), um dos grandes nomes do gênero, que por quase 40 anos formou conhecida dupla com Pardinho e influenciou gerações – o sul-mato-grossense Almir Sater, por exemplo, é um discípulo assumido.
“Tião Carreiro é um dos pilares da viola no Brasil. Foi um dos primeiros a ver a possibilidade da viola não só como instrumento de acompanhamento, mas também para fazer solo”, diz João Paulo, que começou tocando violão e guitarra. Graduado em Música na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele estudava jazz e música brasileira instrumental. Aos poucos, foi “voltando às origens”, acompanhando o pai em encontros e pescarias no interior paulista. E ouvindo, e aprendendo.
“É um universo completamente diferente”, conta o músico, destacando a necessidade de uma “técnica mais apurada na mão direita” e os diversos ritmos tocados na viola, como cururu, cateretê, guarânia, toada, pagode caipira, rastapé. Pelo menos 20, estima. “Dentro de cada ritmo, tem variações”, observa João Paulo, que dá aulas na Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp, a antiga Universidade Livre de Música) Tom Jobim e na Faculdade Cantareira, ambas na capital, além de oficinas e cursos particulares.
Cultura popular
Chico Lobo: “As pessoas querem a cultura. Só falta chegar nelas”
Chico Lobo sorri à pergunta sobre qual foi a primeira canção que ele tirou na viola – depois de afinada pelo pai seresteiro, de quem ganhou o instrumento quando tinha 12, 13 anos. Ágil, ele imediatamente dedilha os primeiros acordes de Chico Mineiro, em sua viola cheia de detalhes, como nuvens e relâmpagos – cada uma tem seu próprio desenho. Defensor da cultura popular e de formação autodidata, o músico acredita que o uso generalizado do instrumento é também uma reação ao processo de globalização. “As pessoas querem voltar a tocar a sua aldeia.”
E a viola só se manteve viva pelo uso no sertão, no interior, nas festas, como as Folias de Reis, diz Chico Lobo. “Eu sempre quis consumir o Brasil. A viola é o instrumento que mais representa a cultura brasileira. Em Minas, a viola é beira de rio. Não se tem a tradição das duplas caipiras, mas a do violeiro. No Sul, no Mato Grosso, a gente tem as violas mais ligadas às danças. No Nordeste, tem os repentes”, enumera o músico.
Ele aponta os violeiros, nos primeiros tempos, como cronistas do cotidiano, sua importância nos festejos e em colheitas de mutirão, em uma tradição que também acompanhou o processo de urbanização da sociedade brasileira. “Eles também carregaram a cultura para a cidade grande.” Neste mês de junho, Chico Lobo deve lançar o livro Conversa de Violeiro, sobre tradições rurais, em parceria com o escritor e tocador Fábio Sombra, além de uma coletânea com participações de Tavinho Moura e Rolando Boldrin.
O jornalista e pesquisador Walter de Sousa, autor do livro Moda Inviolada: Uma História da Música Caipira, destaca algumas fases na trajetória brasileira, a partir das influências ibéricas. Vem o período da música gravada, com o pioneirismo de Cornélio Pires, ainda de forma não industrial, o canto em duas vozes (em que se ressalta a dupla Tonico e Tinoco) e uma mistura com ritmos de origem em outros países latinos, como a guarânia, a ranchera e o bolero. Posteriormente, acontece certa “apropriação” da viola pela MPB, com compositores de classe média. Por fim, a viola instrumental e o surgimento de orquestras. “A viola tem um caminho interessante. Fez um passeio pelo universo popular e voltou ao erudito”, diz Walter.
Ele lembra que o instrumento tem origem ibérica – o nome deriva do espanhol vihuela. Da região do Alentejo, em Portugal, surgiu a viola campaniça, que tenta resistir, pelas mãos, entre outros, do violeiro Pedro Mestre, pesquisador das tradições alentejanas, que tem contribuído para a retomada do instrumento no país europeu. Ele e Chico Lobo se encontraram em 2006 – “Esse momento, dois minutos de muito improviso, emocionou as pessoas”, lembra Chico. Desde então, os dois trocam ideias e notas, inclusive com disco gravado. Mais do que um possível encontro entre “mãe” (viola campaniça) e “filha” (caipira), Chico ressalta a “partilha de culturas”.
Rui Torneze e a Orquestra Paulistana de Viola Caipira
É exatamente essa vivência que Rui Torneze considera importante no mundo da viola. “É um instrumento bem étnico. Você não aprende direito se não fizer uma imersão cultural.” Com esse objetivo, a sede da Orquestra Paulistana de Viola Caipira, na Penha, zona leste de São Paulo, é ambientada – tem horta e fogão de lenha, por exemplo. “Aqui parece uma casa de avó de sítio”, define Rui.
Em setembro de 2001, a partir da orquestra, surgiu o Instituto São Gonçalo – padroeiro dos violeiros –, agora uma organização não governamental dedicada à pesquisa e à divulgação da cultura dita caipira. Teve como padrinhos Inezita Barroso e Pena Branca (José Ramiro Sobrinho), que formou dupla com o irmão Xavantinho (Ranulfo Ramiro Silva).
Walter de Sousa lembra de uma entrevista com Pena Branca, que depois de tirar fotografias chama o pesquisador até o quarto e lá sobe em um banquinho para, no alto do guarda-roupa, pegar uma caixa de papelão. “Ói, queria te mostrar isso. É o Grammy? Já tinha visto um?”, disse, orgulhoso. Em 2001, ele havia vencido o Grammy Latino de Melhor Disco Sertanejo pelo álbum Viola Caipira, que Xavantinho não chegou a ver – morreu em 1999. Pena Branca se foi em 2010.
O pesquisador identifica certa superação de um preconceito que costuma, ou costumava, marcar o gênero. “Isso (preconceito) foi reforçado por algumas figuras, como o Jeca Tatu, personagem criado para representar certa aversão ao progresso. É uma discussão entre o arcaico e o moderno, que marca toda a cultura brasileira. Mas no final do século 20, com a globalização, se perdeu um pouco desse medo e passou a haver uma espécie de orgulho caipira.”
Tradição
Na Orquestra Paulistana de Viola Caipira, tocam músicos de 12 a 82 anos, conta o maestro Rui Torneze. Recentemente, um violeiro, hoje afastado, completou 90 anos. “O nosso maior trabalho é formação de público”, diz. Nas apresentações, o número de componentes varia conforme o pedido. Pode ir de cinco a 60. Ali, não há impedimento sobre o uso de ritmos, o que já chegou a causar estranhamento entre alguns músicos. A orquestra toca de tudo, “qualquer música que seja boa de se escutar”, diz Rui.
O tema leva a uma discussão sobre a preservação da cultura. “A tradição é orgânica, vai se transformando, não é estática”, opina João Paulo Amaral. “Acho que é importante ter todas as formas. Mas é importante também a tradição respirar, senão ela morre”, diz. “O purismo engessa”, afirma Chico Lobo. “Não existe purismo em nenhum produto cultural. Hoje é difícil imaginar o que é genuinamente caipira”, observa Walter de Sousa. “Na minha pesquisa, conversei com vários violeiros que consideram a guarânia um gênero genuinamente caipira. Não dá para estabelecer limites.”
Mas existe, claro, uma essência que se preserva. Chico Lobo costuma repetir uma frase: “Não há como tocar viola e querer ser violeiro sem ser atraído à beleza de suas tradições, causos e crenças, mesmo sendo da cidade grande”.
Renato Teixeira
“Todo o Brasil toca viola”, diz Renato Teixeira, autor, com Almir Sater, de Um Violeiro Toca. Ele ressalta algumas das várias possibilidades do instrumento. “A minha música é uma fusão de MPB com música caipira. A influência paraguaia do Almir… O Passoca aplicou Adoniran Barbosa na viola. A viola é um tempero para qualquer música que você precise”, cita Renato. “Eu nunca toquei viola, mas sempre tive um violeiro por perto.”
Tocando em frente
Além dos trabalhos individuais e coletivos, muitos músicos se dedicam ao ensino da viola. Interessados não faltam. Chico Lobo, por exemplo, que em 2006 criou uma escola em Santana dos Montes (MG), com 30 alunos, abriu no ano passado um instituto que leva o seu nome, dedicado ao ensino da viola em escolas da zona rural de São João Del Rey, onde nasceu. Hoje, são 45 alunos no distrito de Cajuru e 30 no de Emboabas, totalizando 105. “Tem fila de espera”, conta Chico, que apresenta um programa de TV há 11 anos e um de rádio há seis. “As pessoas querem a cultura. Só falta chegar nelas.”
Hoje morando em Penedo (RJ), o violeiro Braz da Viola, também professor e luthier (artesão do instrumento), organiza há 16 anos um curso chamado Viola nas Montanhas, sempre na terceira semana de janeiro e com um convidado no encerramento. Por ali já passaram Inezita Barroso, Pena Branca, Paulo Freire, Ivan Vilela e, neste ano, Noel Andrade.
“Na época em que me interessei pela viola não existia material didático”, lembra Braz, que estudava violão, pretendia tocar jazz e por curiosidade, como muitos, comprou uma viola. “A minha surpresa foi descobrir o Brasil. Em volta da viola, tem um país cheio de ritmos, de culturas que eu não conhecia.”
Em 1991, ele criou uma orquestra em São José dos Campos, no interior paulista. “Começou a aparecer gente do nada.” Um dos projetos que lhe deu mais satisfação foi o da Orquestrinha São Xico, em São Francisco Xavier, pequena cidade com 3 mil habitantes. “Eu só fazia a direção musical. A criançada escolhia o repertório.”
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Depósito de memórias
Mineiro de Campina Verde e morador de Brasília, Roberto Corrêa é referência no estudo e como violeiro, com obras publicadas e gravadas desde os anos 1980. Começou por acaso e tornou-se um dos mestres do instrumento, que, segundo diz, remete às origens brasileiras. “Um instrumento depositário de memórias”, define.
O gosto e a prática da viola estão em alta. Há muita gente tocando, orquestras voltadas para o instrumento. Você já chegou a falar sobre um grande movimento em torno da viola. A que atribui esse interesse?
Na década de 1960, a música caipira vinculada à indústria da cultura passa por transformações e a viola caipira, no contexto das duplas, acaba perdendo espaço para outros instrumentos. Por outro lado, nesta mesma década, cinco acontecimentos inauguram um movimento de expansão da viola caipira por todo o Brasil, a saber: gravações de discos de viola instrumental (Julião e Zé do Rancho); o violeiro Tião Carreiro inventa um novo e complexo ritmo, o pagode-de-viola; surge a primeira orquestra de violeiros (de Osasco/SP); o compositor Theodoro Nogueira inaugura a escrita musical para a viola com sete prelúdios além de um concertino para viola e orquestra; e a viola conquista o público urbano com a canção Disparada (em 1966, Theo de Barros e Geraldo Vandré), vencedora junto com A Banda (Chico Buarque), do 2º Festival de MPB da TV Record. A viola caipira é um instrumento que traz reminiscências ancestrais e, ao mesmo tempo, permite inovações se adequando à música contemporânea.
Você também destacou a diversidade e a riqueza da viola, “que antecede o violão”. Como foi sua passagem de um instrumento para outro, e qual a importância da viola para a música brasileira?
Na Universidade de Brasília, eu participava de um grupo de música regional que batizamos de Olho D’água. Por acaso, encontrei uma viola caipira em promoção, juntei as economias, comprei o instrumento e em pouco tempo deixei o violão pela viola. Como não havia nada publicado sobre a viola, a não ser um caderno de acordes da afinação Cebolão, da dupla Tonico e Tinoco, comecei a fazer pesquisas de campo, aprendendo com os mestres violeiros os segredos do instrumento.
A viola está ligada a muitas de nossas práticas musicais tradicionais. Isto é precioso para a música brasileira pois nos remete às nossas origens, ao ancestral de nossa música. Podemos pensar na viola como um instrumento que chegou até meados do século passado com conhecimentos, técnicas e usos transmitidos essencialmente pela oralidade. Entendo isso como uma grande riqueza: um instrumento depositário de memórias… Quando, em tempos modernos, a viola passa a ser utilizada em estilos musicais diversos as possibilidades são inúmeras. Temos, por exemplo, um grande campo para ser desenvolvido para a viola como instrumento solista; composições instrumentais sendo escritas para o instrumento; e a pesquisa de suas tradições. Na minha opinião, hoje está sendo escrita, por meio da viola caipira, uma parte importante da história da música brasileira.
Há defensores da chamada música de raiz favoráveis ao uso da viola apenas para esse universo, por uma questão de tradição. Você acredita que o uso do instrumento em outros ritmos ajuda a ampliar as possibilidades da viola, sem prejudicar suas origens?
Acredito que sim. Sem dúvidas. A viola caipira é um instrumento musical e, como tal, serve à música, e isso é mais amplo do que as ideias atuais que podemos ter sobre “música raiz”. As origens da viola caipira são parte da história do instrumento, e nos cabe preservá-la e conhecê-la melhor. Historicamente, a viola esteve ligada a contextos culturais tradicionais, mas, atualmente, vem sendo, também utilizada, de outras formas e para outros públicos. Há muita controvérsia sobre o que seja música raiz ou música de raiz. O que sabemos é que a viola esteve presente nas práticas musicais do Brasil colonial, práticas que pouco conhecemos. De toda forma, as informações que chegaram até os dias de hoje nos mostram a viola sendo utilizada tanto nas práticas devocionais como nas práticas de lazer. A viola servindo de acompanhamento para o cantador, para as duplas, para as folias. A viola conduzindo danças como lundus, catiras, e viola para a música instrumental. Ou seja, a viola para todo tipo de música.
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