Urariano Mota: Chico Buarque e a revolução portuguesa

ROSA

Em dados factuais, a música de Chico Buarque para a revolução portuguesa foi Tanto Mar. Pesquiso e copio da internet: “A célebre canção ‘Tanto Mar’, da autoria de Chico Buarque de Hollanda, tem duas versões. A primeira foi lançada no dia 26 de agosto de 1975 e reflete a expetativa e a alegria em relação à situação portuguesa por parte do compositor brasileiro. Em 1978, Chico Buarque alterou alguns versos de acordo com a sua visão face aos posteriores desenvolvimentos em Portugal”.

Soube nestes dias que “Fado tropical” foi visto como uma crítica ao regime salazarista. À primeira vista, é curioso que Tanto Mar se torne Fado Tropical, outra grande composição de Chico Buarque. Para a maioria dos portugueses, a música de Chico para a revolução portuguesa estaria nos versos “Ai está terra ainda vai cumprir, seu ideal. Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. Reflito e me pergunto: estarão errados? Então me acodem o bom senso e a experiência que cantam: é livre, infinita e fecunda a interpretação de uma obra de arte.

Olhemos a letra da composição de Tanto Mar em sua primeira versão.

“Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim”

E na segunda versão

“Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
N’algum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, como é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim”

No YouTube, existe um esclarecedor vídeo de Tanto Mar para a revolução portuguesa, nas duas versões ligadas à música Grândola, Vila Morena.

ANTES DE OUVIR O ÁUDIO DESLIGUE O SOM DA RÁDIO BRASIL CULTURA NO TOPO DA PAGINA

https://www.youtube.com/watch?v=9RLScWescyU

Agora, cheguemos mais perto do Fado Tropical. No Brasil, até então para nós era claro que a música fazia uma crítica à colonização portuguesa, no tempo da invasão holandesa ao Nordeste do Brasil. Por que não chegou assim aos portugueses? Mais uma vez, noto: infinitos são os significados de uma obra de arte, tantos que o próprio autor não os conhece.. Fado Tropical também pode ser o seu posterior significado, se levarmos em conta que na época Portugal saía de regime de colonização, uma saída a que foi obrigado pela resistência fundamental dos guerrilheiros lá fora, e de modo interno pela bravura dos democratas que se opunham à ditadura portuguesa.

Para melhor prova da associação do Fado Tropical à Revolução dos Cravos, olhem as imagens da canção no YouTube.

Na verdade, Fado Tropical fazia e faz parte da peça musicada “Calabar, o elogio da traição”. E Calabar foi o brasileiro que trabalhou para os holandeses, tido até hoje como um traidor pela história oficial do Brasil. Daí que Chico fez o elogio a Calabar em plena ditadura brasileira, falando de história distante e perto do sangue que corria nas prisões. É uma belíssima composição, aliás, toda peça é bela, O co-autor é o moçambicano Ruy Guerra. Na música ele declama os versos com “sotaque português” a canção Fado Tropical. Sotaque português, é claro, para ouvidos brasileiros.

Aproveito a oportunidade para lembrar, de passagem, essa necessária peça de Chico Buarque e Ruy Guerra. As associações que fazemos, os brasileiros, às canções dela vêm cheias de dor, não pelas composições de Calabar em si, mas pelo momento em que as ouvíamos em 1973 e seguinte anos, os mais sangrento da ditadura no Brasil. Para mim, 1973 foi o ano do que se chamou “o massacre da granja são bento”, em que seis militantes socialistas foram mortos sob tortura, e Médici e sua repressão fizeram a sua farsa, o seu teatrinho: num “aparelho” da granja são bento, 4 homens e duas mulheres foram trucidados em troca de tiros com a polícia, conforme a historinha e farsa mais repetida na ditadura brasileira. Deles falo no livro “Soledad no Recife” e em meu mais recente romance “A mais longa duração da juventude”.

Da peça Calabar, lembro com os olhos que sofríamos na ditadura a composição Cobra de Vidro. Ela nos falava tanto naqueles malditos anos. A pretexto do Calabar morto, Chico Buarque nos falava dos companheiros com os corpos destruídos pela tortura:.

“Aos quatro cantos o seu corpo
Partido, banido
Aos quatro ventos os seus quartos
Seus cacos de vidro
O seu veneno incomodando
A tua honra, o teu verão
Presta atenção

Aos quatro cantos suas tripas
De graça, de sobra
Aos quatro ventos os seus quartos
Seus cacos, de cobra
O seu veneno arruinando
A tua filha, a plantação
Presta atenção

Aos quatro cantos seus ganidos
Seu grito medonho
Aos quatro ventos os seus quartos
Seus cacos de sonho
O seu veneno temperando
A tua veia
O teu feijão”

https://www.youtube.com/watch?v=1XZj-XCB1SQ

O certo é que o Fado Tropical se tornou também a composição de Chico Buarque para o 25 de abril, sem dúvida. Como escrevi em meu recente romance: o passado é o mais longo tempo. Não no sentido de ser uma distendida história já vista, a se perder nas trevas. Mas no sentido de que o passado se reconstrói sempre, queiramos ou não. Assim como no Chico Buarque para a revolução portuguesa. Na verdade, cada vez mais o notamos, Chico é o compositor que busca a terra da fraternidade, lá e cá, em novos significados. De tanto mar enfim que todos temos a navegar.

*Urariano Mota é escritor e jornalista pernambucano.
Artigo publicado originalmente no Jornal Tornado

 

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