Um círculo vicioso, formado por vários e complexos fatores, faz com que o Brasil tenha poucos leitores de livros
Nos últimos anos, os brasileiros seguem comemorando a queda crescente dos índices de analfabetismo. Entre 1991 e 2001, pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam que a taxa de analfabetismo caiu de 20,1% para 13,6% da população. Tudo isso levaria a crer que o Brasil estaria, finalmente, próximo de se tornar um país de leitores. Mas, na prática, isso não vem acontecendo. Os hábitos de leitura do brasileiro médio estão mudando — se muito — a uma velocidade infinitamente mais lenta. E o mercado editorial passa por um período recessivo que vem se revelando muito complexo para todos os profissionais envolvidos com o livro como material de trabalho: editores, escritores, distribuidores, críticos e livreiros.
Os números não mentem. A última pesquisa de fôlego, realizada para identificar o perfil do leitor nacional, Retrato da Leitura no Brasil, divulgada em dezembro de 2001, envolvendo 5.980 entrevistas em 46 cidades, deixa claro que existe, sim, um grande potencial de crescimento do mercado editorial brasileiro. A pesquisa, patrocinada em conjunto por Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), Câmara Brasileira do Livro (CBL), Associação Brasileira dos Editores de Livros e Associação Brasileira dos Fabricantes de Papel e Celulose, mostra que o público de leitores, no Brasil, chega a 26 milhões de pessoas. Esse número é equivalente aos leitores somados de Espanha e Portugal, ou 11% a mais do que os leitores existentes na França. Um índice desses deveria ser motivo de comemorações.
Pois não é. A rigor, esse total representa apenas 30% dos 86 milhões de leitores em potencial (pessoas com mais de 14 anos, que são alfabetizadas, segundo os dados do IBGE) existentes no país. Pior: dos 26 milhões de pessoas que afirmam se interessar pela literatura, apenas 17,2 milhões têm acesso efetivo ao livro; nada menos do que nove milhões de pessoas não lêem porque não têm dinheiro para gastar com livros, ou moram em cidades onde não existem livrarias e bibliotecas. Entre os que vivem nos grandes centros metropolitanos, o problema é outro: somente 12 milhões de brasileiros estavam lendo no momento da pesquisa. Esse segmento alega falta de tempo e dinheiro para isso.
São índices desconcertantes. “Existem dois Brasis convivendo num mesmo espaço. Uma elite sofisticada, com índices de leitura semelhantes aos do Primeiro Mundo, e um grande contingente de pessoas mal alfabetizadas, que não lêem pelos mais diversos motivos”, analisa o diretor comercial da editora Summus, José Henrique Grossi. “Os problemas são muitos. Se individualmente se mostram complexos, no conjunto formam uma barreira muito difícil, que somente será vencida com a conjugação de esforços de toda a cadeia produtiva. O livro interessa e atinge apenas a uma pequena faixa da população, portanto, as tiragens são baixas, o custo unitário é alto, vende pouco, as tiragens continuam baixas. A produção se elitiza, pouca gente lê, as tiragens são baixas, o custo unitário é alto, e assim por diante”, resume o vice-presidente da CBL, Marino Lobello.
Por outro lado, há centenas de cidades brasileiras onde os possíveis leitores não encontram sequer um local onde possam alugar — ou comprar — livros. “Bibliotecas são fundamentais. Afinal, o brasileiro médio não tem dinheiro para comprar livros, que é um artigo considerado supérfluo”, argumenta o escritor carioca Antônio Torres. “A biblioteca pública desempenha papel fundamental na popularização do livro. Ela significa o livro gratuito na mão do povo, simboliza o acesso efetivo do público de baixo poder aquisitivo ao hábito da leitura”, escreveu o ex-secretário do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura, Ottaviano de Fiore di Cropani.
O escritor Affonso Romano de Sant’Anna, que dirigiu a Fundação Biblioteca Nacional durante seis anos, é um árduo defensor dessa linha de raciocínio, e faz uma autocrítica.”Não existe no Brasil um projeto de política do livro e da leitura, a médio e longo prazo, embora durante seis anos eu tenha lutado por isto. Foi tudo sempre descontínuo”, admite. Para Sant’Anna, contudo, a centralização administrativa vem piorando a situação. “Quando dirigi a FBN, lancei o projeto Biblioteca Ano 2000, que consistia em unir três partes de um triângulo: o livro, a leitura e a biblioteca. Criamos um programa de incentivo à leitura, o Proler, que se instalou em centenas de cidades; criamos o Sistema Nacional de Bibliotecas, que reuniu mais de três mil delas e fazia reuniões municipais, estaduais e nacionais. Mas essas ações acabaram esvaziadas, em prol de uma política que acumulava poder em Brasília”, diz Affonso, sem meias palavras.
A pesquisa Retrato da Leitura no Brasil revela números bastante expressivos sobre um paradoxo. Embora uma parcela de 60 milhões de brasileiros letrados revele não ter tempo, dinheiro ou vontade de ler livros, 89% deles reconhecem que a leitura é importante. Mais ainda: pretendem incentivar os filhos – as gerações futuras – a efetivamente ler.
Coincidência ou não, esse é um dos pontos que a pesquisa enfatiza com mais veemência: a necessidade de uma reforma educacional. Isso significa, claro, investir prioritariamente nas crianças e adolescentes. Os números da pesquisa mostram, de fato, que isso vem ocorrendo, mesmo que de forma tímida. Entre as idades de 14 e 19 anos, 45% dos brasileiros afirmam que lêem regularmente, um índice que cai progressivamente, à medida que aumenta a idade dos pesquisados; apenas 24% mantêm o hábito quando passam dos 40 anos. “Os índices de permanência e aprovação nas escolas públicas aumentaram muito nos últimos dez anos. A percepção de muitos editores é que teremos um futuro promissor, quando essa geração que hoje é adolescente virar adulta”, arrisca José Henrique Grossi.
O próprio Ottaviano De Fiore, que exercia o cargo de secretário de Livro e Leitura até dezembro último, aponta um complicador: parte dos jovens alfabetizados não consegue compreender frases longas, embora decifre o significado isolado das palavras. “Saber ler não é suficiente para ter-se familiaridade ou convívio permanente com a leitura. Todos os povos civilizados se caracterizam por possuírem uma massa crítica de leitores ativos, isto é, gente que desde criança adquiriu o hábito da leitura e todos os dias manipula com facilidade uma grande quantidade de informação escrita”, explica.
O país tem menos analfabetos, é certo, mas parte desses novos alfabetizados não faz mais do que assinar o próprio nome e ler frases curtas. “A quantidade e qualidade do investimento público nesse campo é um tema político, em favor do qual a sociedade deve ser sensibilizada e mobilizada, pois definirá o futuro do país”, defende Cláudio Willer, da UBE.