Sem Meias Palavras

Sem meias palavras 

Reichenbach sem meias palavras

Carlos Reichenbach: 60 anos do comodoro do cinema nacional


 

O cineasta gaúcho Carlos Reichenbach completa em 2005 60 anos de vida e 40 de cinema. Um dos mais ousados e experimentais diretores do cinema brasileiro, esteve à frente de produções importantes como Filme Demência, O Bandido da Luz Vermelha, Amor, Palavra Prostituta, Dois Córregos, dentre outros.

“Posso ir para a filmagem com tudo muito bem planejado no papel, como sempre faço, mas na hora H sempre há espaço para o improviso e o imprevisto”, diz o diretor, que na retrospectiva de sua carreira, que está sendo realizada no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, depois de passar pelo Rio de Janeiro, promove a pré-estréia de seu mais novo longa-metragem, Bens Confiscados, com Betty Faria no elenco.

Além de sua direção ousada, Carlão é conhecido também por suas opiniões, como suas afirmações sobre a crítica. “Eu não tenho o menor respeito pelo crítico que se acha melhor que o filme. A crítica deve ser um apêndice do filme; deve ajudar o espectador a mergulhar nele ou entender porque não lhe agradou”, afirma o cineasta, que mantém um blog, chamado “Reduto do Comdoro”, no qual escreve livremente suas opiniões sobre cinema, enaltecendo muitas obras que a crítica convencional ignora.

Segundo Reichenbach, um dos grandes problemas dos cineastas brasileiros dos anos 90 e 2000 é a americanização. “A fetichização do prêmio maior da indústria cinematográfica americana é um insulto aos nossos maiores criadores”, diz.

Você disse certa vez que divide seus filmes em duas categorias, aquela com as produções de teor intimista que investem num cinema dos sentimentos, e a classe de produções que buscam dialogar o “cinema popular”, com a ousadia formal e/ou a experimentação. Você prefere trabalhar em uma dessas duas categorias?

Eu faço filmes, basicamente, movido por coisas que me angustiam e/ou que de alguma forma sinto necessidade de dividir com os outros. Cinema, sem nenhuma demagogia, foi o meio de expressão que encontrei para conhecer os outros e a mim mesmo. Por isso, não consigo conceber o cinema como fetiche ou comércio descartável. Eu não enxergo o “cinema popular” como comércio rasteiro e irresponsável; o verdadeiro “cinema popular” é aquele que respeita e dialoga diretamente com o seu protagonista, o homem brasileiro. O cineasta mais importante do País, Nelson Pereira dos Santos, é aquele que melhor entendeu essa noção: vide Amuleto de Ogum – uma obra-prima, o melhor filme sobre umbanda, que respeita e dialoga diretamente com aqueles que a praticam; lembrando sempre que seu diretor se diz ateu – e Estrada da Vida – um filme sobre música caipira que agradou em cheio os seus cultores e que trata seus personagens com admiração e carinho. Gosto muito dos meus chamados “filmes femininos” (Lilian M., Amor, Palavra Prostituta, Anjos do Arrabalde, Dois Córregos, Garotas do ABC e Bens Confiscados), mas é nos masculinos (como Império do Desejo, O Paraíso Proibido , Filme Demência e Alma Corsária) que eu me exponho mais. São os que eu mais gosto de rever porque descubro sempre alguma coisa nova e surpreendente.

Com o avanço cada vez maior da arte eletrônica e do cinema experimental, você acha que a tendência da produção tradicional é a de cada vez mais entrar no caminho da experimentação, da confluência de tecnologias?

Infelizmente, não. John Cage diz que “em arte, tudo é possível, mas muito pouco é tentado”. Pessoas que pensam fazer cinema com as câmeras numéricas acabam usando a nova tecnologia para repetir os vícios e certas obviedades da gramática cinematográfica. Durante o debate na retrospectiva no Rio de Janeiro, alguém disse ironizando que a palavra de ordem agora é “uma mini-dv na mão e meia idéia na cabeça”. Continuo achando que não é tecnologia que vai fazer o cinema avançar, mas (sempre) ter o que dizer.

Para muitos, ao mesmo tempo em que “retomou” a produção do cinema nacional, a geração de cineastas dos anos 90 e 2000 trouxe consigo uma “americanização” do fazer cinema, numa espécie de geração do “videoclipe” e da “câmera digital”. Como você vê isso?

O mais grave é que a cobrança atual da mídia em geral, com relação ao cinema brasileiro, é chegar ao Oscar. O sonho de alguns jovens diretores é fazer carreira em Hollywood. É o inverso do que propôs John Lennon: “Atuar localmente e pensar globalmente”. A fetichização do prêmio maior da indústria cinematográfica americana é um insulto aos nossos maiores criadores.

Hoje em dia é mais fácil fazer cinema do que antes, em virtude de adventos tecnológicos, como o cinema digital, ou as dificuldades continuam as mesmas?

Isso é um mito. Cinema, digital ou não, precisa de dinheiro (e muito) para ser feito; logo as dificuldades continuam as mesmas, senão muito maiores do que na época em que eu comecei (1965). Para você ter idéia, As Libertinas foi feito com financiamento bancário (do extinto Banco Mineiro do Oeste) que foi pago com a própria bilheteria do filme. Isso hoje é inconcebível. Em seu novo filme, Bens Confiscados, você aborda uma das questões mais pungentes da política atual: a corrupção. Olhando para trás, na época em que longas como Amor Palavra Prostituta sofriam com a censura militar, o que mudou na conjuntura política brasileira e no falar sobre ela de lá pra cá? Mais paradoxos. Mudou tudo, por um lado e nada por outro. Hoje podemos falar em censura econômica. Hoje podemos falar na “ideologia da futilidade, que tanto preocupava Fritz Lang. A única mudança radical possível seria enxergar a cultura como necessidade básica, essencial, como saúde, comida e educação. Com relação ao cinema como arte realmente popular, é preciso lembrar que o ingresso, na época de Amor, Palavra Prostituta custava uma passagem de ônibus urbano. Tenho certeza de que se o ingresso do cinema (pelo menos de todos os filmes brasileiros) custassem dois reais, as salas estariam lotadas. O cinema precisa bater de frente com a televisão, que entra na nossa casa sem pagar nada por isso. O cinema visto como diversão de classe média alta gerou deformações espantosas. A panacéia mais óbvia é “uma cara nova para o cinema nacional”. Que cara é essa ? Como afirmava o poeta Murilo Mendes: “Só é moderno quem já foi antigo”. Para existir vanguarda é preciso conhecer profundamente tudo que já foi feito antes. E é esse acesso que deveria ser democratizado radicalmente.

Como você trabalha a relação entre roteiro e direção? Cria primeiro um texto para depois segui-lo durante as filmagens, ou prefere uma maior liberdade de direção na hora de filmar?

O segredo da criação é intuição. Eu amo os autores instintivos. São os melhores. Meus ícones no Brasil são Nelson Pereira dos Santos e José Mojica Marins, dois pólos absolutos da invenção nativa, porque não se inibem diante do risco. O preço de fazer filmes deflagradores e definitivos é não ter medo de arriscar. Nicholas Ray dizia que o único erro de um criador é querer agradar a todo mundo. Quem pensa demais em acertar, sempre erra ou não faz nada. Posso ir para a filmagem com tudo muito bem planejado no papel, como sempre faço, mas na hora H sempre há espaço para o improviso e o imprevisto. A filmagem não pode ser burocrática. Por isso, não uso nunca o expediente do story-board. Gosto de armar a cena inteira com os atores, ensaiá-los e só então posicionar a câmera definitivamente. Cada vez mais, para mim, a câmera deve atuar como um pincel ou uma caneta. Atualmente, gosto muito de ensaiar com os atores antes das filmagens; um trabalho de mesa, como no teatro. Como sou eu mesmo o roteirista, eu preciso ouvir o meu texto na boca dos atores com antecedência. Às vezes, os diálogos não funcionam e é nessa preparação que o autor-diretor pode mudar as palavras, reforçar ou não a sua inflexão, dando credibilidade ao que vai ser dito pelo ator que vai interpretar o personagem.

Um de seus maiores sucessos, Filme Demência, foi realizado numa parceria com a Embrafilme, amada e odiada entre os cineastas brasileiros. Qual a sua opinião sobre a entidade?

A Embrafilme cumpriu uma função importante nos anos 80. Ela estimulou o interesse de outros países pelo cinema nativo. Por mais que se diga que ela privilegiava o Rio de Janeiro, foi durante esse período que surgiu o chamado “Novo Cinema Paulista”. Talvez o seu maior erro tenha sido competir diretamente com o distribuidor independente. Essa figura importantíssima, para que nos anos 70 fossem produzidos mais de cem filmes por ano, praticamente desapareceu. A meu ver, a Embrafilme deveria ter agido diretamente na exibição. Deveriam existir salas de cinema que exibissem exclusivamente filmes brasileiros, já naquela época. Parece um absurdo, mas não é. Como eu disse, filmes brasileiros deveriam chegar aos cinemas ao preço de uma passagem de ônibus urbano (dois reais). Ela tinha esse poder, e não usou. Por outro lado, se ela existisse hoje, estaria competindo diretamente com os produtores independentes porque iria morder a parte maior das leis de incentivo, esteja certo disso. A parceria perfeita entre Estado e cinema já foi experimentada; o PIC-TV, da TV Cultura. Infelizmente, não souberam dar valor.

Você é conhecido como um cineasta “livre”, que prefere as opiniões de blogs às dos jornais, que valoriza filmes massacrados pela crítica oficial, sempre dando destaque a detalhes e a um ‘olhar mais atento’ que para muitos passam despercebidos. Na sua opinião, qual o grande pecado da crítica atual?

A comunicação via Web trouxe uma idéia revolucionária, senão libertária: o compartilhamento. Por meio da rede podemos dialogar diretamente com pessoas que possuam o nosso mesmo repertório, ou até melhor. Aprendi muito nesses anos que venho dividindo informações e debatendo idéias. Refletir sobre filmes, livros, etc, em sites ou blogs pressupõe ausência de compromisso. Nesse espaço crítico ninguém é obrigado a escrever sobre um filme que não gostou; se o faz, é porque a obra o incomodou de alguma maneira. Meus senões com a chamada “crítica diária” é que tem gente que vai ao cinema ou que escreve como se estivesse carregando um fardo, ou usam isso como exercício de poder. Eu não tenho o menor respeito pelo crítico que se acha melhor que o filme. A crítica deve ser um apêndice do filme; deve ajudar o espectador a mergulhar nele ou entender porque não lhe agradou. Em sites ou blogs, quando o sujeito destrói uma obra criativa, não o faz movido por um desejo de poder, mas por ignorância ou ressentimento. Na mídia impressa, a ignorância e o ressentimento são mais dissimulados. Além do mais, a crítica diária deixou há muito tempo de se aproximar do ensaio. Infelizmente, parece que não há mais espaço para os novos Paulo Emílio, Maria Rita Galvão, Francisco Luiz de Almeida Salles, José Carlos Ismael, Maurício Gomes Leite, e tantos outros.

Quais seus filmes e cineastas prediletos da atualidade?

São muitos. Gosto demais de David Cronemberg, Kiyoshi Kurosawa, Anthony Hickox, etc. Mas o melhor filme que vi recentemente foi Bongiorno Notte, de Marco Bellochio, uma obra magnífica e dolorosa, que trata cada personagem com extrema dignidade. Falar de pessoas movidas à fé é sempre um terreno minado, mas Bellochio faz isso com delicadeza, sinceridade e conhecimento de causa. Mas o que mais chama a atenção neste grande filme é o inesperado. Quando você imagina que o realizador se colocou exclusivamente a serviço da narrativa, entra uma música do Pink Floyd e o filme alça um vôo esplêndido. É esse salto no escuro que dignifica todo o cinema moderno.

Diretores Brasileiros: Carlos Reichenbach
CCBB São Paulo
De 17 a 29 de maio
Ingresso: R$ 4 e R$ 2 (meia-entrada)
Rua Álvares Penteado 112. Centro
Tel.: (11) 3113-3651
E-mail: ccbbsp@bb.com.br

 

Alex Sanghikian

Fonte: Tempestade Comunicação

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