Enquanto a favela sangra, o Estado encena bravura. E o crime organizado, de terno e gravata, continua aplaudindo da plateia.
Volto ao assunto que dominou os noticiários — daqui e de fora. Volto, porque o eco das justificativas oficiais ainda me soa como deboche. Do governo do Rio vem o velho argumento de sempre: as operações ostensivas seriam necessárias para “cortar capim”, conter o avanço do crime organizado. Mas, diante das imagens, do rastro de corpos, do medo estampado no rosto de quem só queria voltar pra casa — o que de fato foi cortado? O crime ou a dignidade?
Combater o crime dessa maneira desinteligente é como bater em massa de bolo: quanto mais se bate, mais ela cresce. As autoridades dizem que “é melhor isso do que não fazer nada”. Mas o que chamam de ação não passa de espetáculo, uma encenação cruel transmitida em tempo real, com helicópteros, fuzis e manchetes. No fim, a única consequência concreta é o pânico. E não é culpa da polícia — que também é vítima, usada como ferramenta descartável por gestores que jogam com a vida alheia como quem lança dados.
O número de mortos — maior que o do massacre do Carandiru — não se explica apenas pela força das facções. Explica-se pela forma, pela lógica distorcida de quem confunde segurança pública com show de poder. O crime está mais armado, mais rico, mais infiltrado. E todos esses “mais de cem abatidos”, ainda que todos fossem criminosos (o que é improvável), amanhã estarão substituídos por meninos de 14, 15, 16 anos, atraídos por um sistema que lhes nega tudo e só oferece a ilusão de poder.
O que o Estado chama de combate é, na verdade, recrutamento indireto. Cada bala disparada alimenta o ódio e perpetua o ciclo.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou recentemente que o crime organizado movimenta mais de R$ 140 bilhões desde 2022. Sessenta bilhões apenas no mercado de combustíveis. Números de multinacional — e nenhuma dessas sedes está numa viela de terra batida. Nenhum dos grandes chefes mora na favela. Nenhum morre em operação. O verdadeiro crime organizado mora em condomínios de luxo, patrocina campanhas, financia negócios, e é recebido com tapete vermelho em Brasília.
A favela, essa sim, é o palco conveniente. Lá se exibe a “guerra ao crime” que tranquiliza a classe média e alimenta o noticiário. Lá o Estado finge agir — e o público, desinformado ou cínico, aplaude o massacre como quem aplaude um ato heroico.
Mas o que se vê, de fato, é o desespero de um poder que perdeu o controle e, sem coragem de encarar os donos do dinheiro sujo, prefere mirar o fuzil no pobre.
Enquanto o governo busca impacto, o crime busca lucro. E, no meio disso tudo, o povo — o mesmo povo que trabalha, pega ônibus, teme sair de casa — fica com o luto e o medo.
O Brasil precisa de sobriedade, não de bravatas. De políticas, não de operações cinematográficas.
Porque enquanto o Estado insiste em “cortar capim”, quem colhe o fruto amargo dessa violência é sempre o mesmo solo: o corpo do povo preto e pobre.
Cláudio Ribeiro
Jornalista – Compositor
Graduação em Direito
Pós-Graduado em História do Brasil e
Ciências Políticas
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