O que se espera, ou se deveria esperar…

 

 

 

 

 

O que se espera, ou se deveria esperar, de um governo em um Estado democrático?

 

Talvez essa seja a reflexão para iniciar uma mediação de nossos impasses eleitorais. Não tão somente conduzir movimentos governamentais em relação ao atendimento de demandas emergentes dos eleitores, mas acima de tudo articular a práxis de uma sociedade em relação à conquista de sua própria autonomia. Como estrutura formalmente constituída para esta práxis, cabe ao poder executivo articular as políticas públicas, o que significa dizer articular os movimentos sócio-econômicos na sociedade em direção à conquista de seu bem-comum, da razão em si destes movimentos terem se articulado para instituir um estado de direito. A capacidade de articulação, portanto, é uma vocação indispensável para justificar a existência das instituições públicas. As políticas públicas são os instrumentos para o exercício desta vocação, mobilizando e deixando-se mobilizar por esforços coletivos em relação a determinados propósitos específicos, mas também caros para todos, também universais. A interdependência, aliás, entre o específico e o universal é a própria razão de ser da política publica.

 

E como é a formulação de uma política pública?

 

Em primeiro lugar, buscar uma abrangência que represente a sociedade como um todo monístico capaz de participar. Tentar entender a diversidade da sociedade.

 

Em segundo, propor um foco de transformação, um propósito específico, administrável, que a todos interesse. Uma forma de pensar e agir orgânica, que possa ser universalmente compartilhada. Todos queremos saúde, trabalhemos por ela, sigamos este norte.

 

Mas o que acontece quando agregamos à política pública o adjetivo cultural? Qual é a consistência da especificidade a que nos referimos? Qual o sentido da política cultural, se a cultura abrange um espectro tão amplo que vai dos modos de vida à construção do imaginário? Onde está o foco?

 

Não sendo possível uma única especificidade para a complexa relação de sistemas do domínio da cultura, ao pensarmos em políticas culturais, adquirimos o vício de compreendê-las somente conforme a situação de mundo que mais afeta nossa vida no tempo e no lugar que habitamos. Políticas de economia, políticas de identidade, políticas de orgulho, políticas de prevenção, políticas de reparação, e assim vai, dependendo de nossas carências.

 

Por estes motivos tenho afirmado que antes do Gil, o Brasil ensaiou muitas práticas de Estado para a cultura, jamais políticas culturais. E jamais políticas de qualquer outra ordem. Não podemos afirmar, por exemplo, que a doutrina “Cultura é um bom negócio”, tenha configurado uma política econômica para a cultura. Jamais passou de arremedo tímido, buscando gerar algumas oportunidades esquálidas para que os agentes setoriais da atividade econômica formal da cultura pudessem sub-existir. O ônus dessa ineficácia tem sido a apropriação literalmente gratuita do capital e do simbólico públicos pelos interesses privados. Ainda que reféns dessa ordem, sequer fomos capazes de aprender a fazer negócios no mercado bilionário da cultura. Um erro estratégico numa economia multicultural como o Brasil. No sentido oposto, não podemos admitir qualquer avanço no campo das políticas de garantia ao direito constitucional do exercício das identidades. As intenções “antropológicas” dos sucessivos governos imperiais e republicanos no Brasil jamais conseguiram superar a tutela cínico-paternalista de querer levar a alta cultura aos desvalidos ou emoldurar a cultura dos pobres ou exóticos em paspartouts. Sintomas de crise histórica do Estado Brasileiro, já em situação avançada.

 

A gestão Gilberto Gil, a despeito de todas suas fragilidades executivas, introduziu tecnologia de política cultural no Brasil. Compromissada em sustentar a complexidade da cultura, segue construindo com muito profissionalismo um discurso que aposta com franqueza na articulação, ao mesmo tempo em que reconhece a cultura como direito, modo de vida e liberdade. As Secretarias do MinC são rigorosamente orientadas por especificidades, enquanto o ministro empenha-se em construir uma pauta pública que reconheça a universalidade dos mesmos aspectos. Um avanço sem precedentes que tem colocado o país à frente da agenda internacional pela Diversidade Cultural.

 

Além dessa inteligência pública melhor institucionalizada, adquirimos nosso ministro-poeta-popstar-negro-baiano, brasileiríssimo com seus sincretismos identitários. Por um lado, personifica a ruptura de todas as dicotomias culturais ditadas pelo pensamento eurocêntrico. Sendo, agindo e pensando ministro Gil, abre caminhos concretos para uma reflexão mais complexa acerca da questão política da cultura no Brasil e no mundo. Por outro lado, o mito é um artista-articulador unânime e ativo. Ninguém deixa de ouvir Gilberto Gil e ele nunca deixa de cantar sua poética. Tê-lo à frente do ministério potencializa sobremaneira o efeito de discurso das políticas culturais propostas. Ano passado, em Dakar, durante o primeiro encontro da Rede Internacional de Políticas Culturais após a promulgação da Convenção da Diversidade Cultural, pude presenciar Gilberto Gil ocupando o centro das atenções entre 50 ministros de cultura dos países signatários da Unesco. O articulador da diversidade.

 

Então, a pergunta que precisa ser formulada para analisar os programas governamentais é: se temos ministério e política cultural, por que é insuficiente a ação do poder executivo?

 

O quê da questão talvez não seja a potência da proposta implantada pelo Governo Lula, mas uma deficiência estrutural da política operada a partir dela. Além de discurso consistente, de valor simbólico e de liderança engajada, uma política pública requer também outras categorias para gerar transformação: a sustentabilidade do discurso, a capacidade de estruturação e o orçamento. Aí reside o calvário do projeto e da equipe de Gil, pois uma abordagem que tem a cultura como centralidade nos modos de vida e no exercício das liberdades requer um governo capaz de incorporar esta noção em absolutamente todos os seus movimentos. O que se passa no Brasil é a precariedade dessa incorporação. O discurso do ministério tem mais sustentabilidade nos movimentos do Terceiro Setor que nos dos demais ministérios. Mais nos movimentos da Unesco, que nos do Planalto. O orçamento contingenciado do MinC é apenas a evidência mais explícita dessa disfunção. Além disso, precisamos conviver com a anti-adesão de nossas instituições sociais privadas – sempre tão vorazes e imaturas – aos interesses públicos. No episódio da Ancinav, pudemos vivenciar a toda a brutalidade e potência de intervenção das grandes redes de televisão, que conseguiram congelar o debate público acerca da apropriação dos meios e conteúdos audiovisuais. No andar da carruagem, tudo o que os brasileiros conseguiram institucionalizar a favor de sua liberdade cultural foram algumas poucas estruturas, como os Pontos de Cultura e o SNC, vitais, porém insuficientes.

 

Ainda assim, a proposta que desejo para a cultura, sejam quais forem nossos próximos presidentes, é a política Gil. Com ela começamos a re-pensar nosso papel como profissionais desse campo e assim nos constituímos na rede que, acima de qualquer governo, poderá gerar novas perspectivas sociais para o Brasil.

 

Vamos à análise das respostas dos candidatos, então.

 

O assunto cultura foi varrido pela guerra entre as legendas. Sabemos que a pauta nunca ocupou espaço relevante nos debates presidenciais no Brasil. Sabemos também que a mídia hegemônica historicamente tem conduzido as pautas e discussões a seu favor no país. Sabemos inclusive que as campanhas eleitorais são montadas por estrategistas de marketing. Já nos acostumamos que os debates do futuro concedam espaço para a roupa suja do passado. Não esperávamos, portanto, que qualquer indício de intenção de política cultural de candidaturas pudesse surgir antes da publicação das propostas, uma semana antes do primeiro turno.

 

Mas elas nos frustraram com quase unanimidade.

 

Cultura e Mercado cumpriu sua obrigação cívica em buscar, junto aos candidatos presidenciais, argumentos que pudessem oferecer à sociedade brasileira mínimas condições de optar por um projeto de sociedade. Traçou cinco perguntas que pudessem embasar um breve diagnóstico de políticas culturais. A primeira ponderando sobre o núcleo do discurso político: “o que é cultura?”. A segunda averiguando a capacidade de articulação entre o presente e o futuro: “qual o compromisso com os programas existentes?”. A terceira, para saber do orçamento, recurso indispensável. A quarta para investigar a capacidade em lidar com urgências: educação e comunicação. E a quinta tentando destrinchar a incógnita da sobreposição do pensamento econômico ao social na gestão do estado de direito: “vai continuar pensando assim?”.

 

O que é cultura?

 

O presidente Lula reconhece que o ministério Gil abriu novas perspectivas conceituais nas políticas culturais, aspecto importante para interpretar sua resposta e que poderá ser fundamental para uma eventual cobrança de critérios no futuro. Aponta a cultura como tudo o que tem valor simbólico e como um direito básico do cidadão. Como assume os conceitos em vigência, pode-se entender essa visão de direitos como abrangendo não apenas o acesso a bens e serviços culturais, mas principalmente as liberdades culturais, ser e viver como se deseja. Também aponta a economia da cultura, como atividade limpa e rentável. A abordagem é feita com rigor, claramente apoiada no discurso da Unesco, e não deixa muito espaço para críticas. Uma perspectiva de práxis, no entanto, que exige mecanismos muito mais amplos que os previstos pela proposta de política cultural da legenda.

 

O candidato Alckmin é mais conservador, compreendendo cultura como valores e tradição nacionais e como sonhos e projetos que construímos e construiremos. Aborda os modos culturais e as culturas populares com centralidade no processo de desenvolvimento cultural. Uma visão que parece francamente bem intencionada, mas, a avaliar pela resposta fornecida, tem problemas.

 

O primeiro é que a idéia de Cultura Nacional, se por um lado contrasta com a heterogeneidade da sociedade brasileira, por outro, não mais consegue defender sua suposta sustentabilidade como projeto social. Em tempos de guerras e de neoliberalismo globalizado, o reconhecimento da Diversidade Cultural exige a transcendência do conceito de nação, e o das liberdades culturais, a superação do paradigma da nacionalidade. Gostaria de lembrar que a Alemanha nazista sustentou seu desenvolvimento na idéia de cultura nacional. Estou longe de afirmar fascista a proposta do PSDB, que isso fique bem claro, mas penso que cultura nacional como processo de desenvolvimento é um equívoco. Não é mais a questão de uma nação construir o seu próprio futuro, isso é do tempo em que acreditávamos que sub-desenvolvimento era falta de virtude e não de dinheiro. É o caso de compreender a interdependência, de pensar em sustentabilidade, de construir um futuro comum, planetário. De gerar autonomias e o diálogo (cultural) que tornaram-se questões de vida ou morte. Por conseguinte, a visão de cultura como valor humano apenas e como modo de vida, muito acima dos bens e serviços culturais e dos processos de desenvolvimento, faz-se essencial.

 

O segundo ponto é a idéia de desenvolvimento cultural que vê a cultura como modos formais de expressão (música, teatro, cinema etc) e que entende modos formais de expressão e culturas populares como processos e não como fins. Tão restrita quanto duvidosa. Além disso, como a resposta do candidato não menciona a economia da cultura, é de se interpretar que o viés econômico esteja na concepção em si do desenvolvimento cultural, o que faz da cultura mero capital.

 

Qual o compromisso?

 

O presidente, como era de se esperar, assegura a continuidade e a consolidação dos programas que o MinC vem gerindo. O discurso continua indefectível em querer assegurar sintonia entre política cultural e política de desenvolvimento, abarcando indústria, vida, democracia e meio-ambiente. E acerta em querer dar escala ao ministério.

 

Mas o compromisso do presidente não parece evidente nas propostas que apresentou, as quais refletem, na perspectiva de partido, o desalinhamento que mencionei anteriormente entre práxis de ministério, de governo e de sociedade. A sintonia a que a resposta se refere precisa mais que palavras para lidar com o estado em crise. O fato é que o PT não incorporou os avanços que a experiência com o Ministério Gil teria permitido. Talvez não o tenha feito até mesmo devido à fragilização das ideologias de esquerda no Brasil, fenômeno que protagonizou. A visão setorial dúbia que vimos na proposta, fragmentária, linear, ficou muito aquém do discurso orgânico que foi o grande mérito da atual gestão e da proposta que elegeu o partido anteriormente. No discurso é obrigação, mas na prática priorizar a continuidade de projetos fundados sobre a exigência de continuidade é redundância, não proposta. Dar escala ao Cultura Viva e consolidar a implantação do SNC e do PNC são compromissos anteriores, se a palavra é mantê-los a ordem deveria ser ir além. Contudo, pontos que poderiam ser grandes trunfos tentam, mas não conseguem, incorporar a complexidade da questão política da cultura. O mínimo que se poderia esperar da esquerda. A aproximação com a Educação, como veremos, quer que a escola veja a cultura como um conceito mais amplo, mas parece reduzir o conceito em si de escola. O tratamento da questão da Comunicação é evasivo em relação ao papel regulador do Estado. Parece que não houve aprendizado algum com o fracasso da Ancinav. Se o discurso da política Gil, que Lula re-edita, teve as estruturas como fragilidade, em termos de proposta parece adorná-las.

 

Alckmin, por sua vez, apesar do discurso centrado no conceito de nação, afirma que todos os programas serão mantidos, desde que atendam o interesse do desenvolvimento cultural, condição que, devido aos projetos estarem fundados nos conceitos transnacionais da diversidade e da liberdade cultural, me parece uma incompatibilidade. Da fragilidade de um conceito vem a fragilidade de um discurso. Penso que se um discurso político não compreende a complexidade do tempo em que é proferido, ou se a mascara, não terá condições de transformá-la sob qualquer circunstância. Não será capaz de rechear de sentido público as estruturas articuladoras e executivas que a ele se subordinam. Tenho a impressão de que o que resta, revestida talvez de boas intenções, é novamente a velha cilada da “instrumentalização” ou da “estrategização” da cultura para sustentar um bom-mocismo desavisado. O programa do PSDB foi apresentado sob o título “Uma questão estratégica na busca do desenvolvimento”, mas não apresentou estratégia. O que persiste é a lógica cartesiana dos termos bélicos contaminando a visão do rizoma, a que melhor caberia à cultura e à sustentabilidade. Ainda o tal do bom negócio. Não mais para sustentar promoção de marcas, mas para apoiar o que considero um modelo de desenvolvimento pseudo-sustentável, ditado pelo capital, em que a cultura é apenas meio para tapar buracos.

 

A miséria

 

Ambas respostas propõem o redimensionamento da miséria cultural em 1%, como ordenam as Nações Unidas, diretamente de Nova Iorque, Genebra e Paris. Não há o que comentar.

 

A tragédia

 

Lula comemora, com mérito, movimentos efetivos de aproximação entre as pastas de cultura e educação e os localiza como estratégicos na próxima gestão. Bom sinal. Eu ficaria mais satisfeito, no entanto, se o assunto cultura passasse a incorporar o assunto escola, não o inverso, como está sendo apontado. Propor o acesso do aluno à diversidade e à participação cultural é fundamental, e a resposta do candidato faz-se bastante convincente neste sentido. Mas é preciso também pensar estes termos no campo da própria educação. O sistema público de ensino estará léguas distante da visão de cultura como liberdade e direito enquanto não passar por uma forte e inteligente revisão conceitual e estrutural. A construção de uma escola fundada na práxis filosófica e na participação política é um grande desafio a ser vencido. Penso que, melhor estratégia que aproximar as ações dos ministérios, seria a de intercambiar conhecimentos para estruturar um Mec capaz de fazer gestão de política cultural, no sentido mais abrangente do termo.

 

Alckmin fica no mesmo paradigma, mas restringi-se à incorporação de formação para modos culturais no currículo escolar, sem fornecer mais detalhes.

 

Quanto ao espinhoso campo da comunicação, no entanto, as respostas são radicalmente divergentes. Lula reconhece que a questão é essencialmente cultural e fundamenta o porquê com propriedade. A resposta é evasiva, entretanto, no que confere ao como, já que não menciona o papel que o MinC desempenhará, uma vez assumida essa competência, nem faz menção à uma eventual política cultural para o MiniCom.

 

Na via oposta, o candidato do PSDB é categórico em afirmar que considera os mecanismos públicos de regulação da comunicação um constrangimento. Encerra a problemática da comunicação na difusão de culturas regionais e não explica como. A depender do teor da resposta, o controle dos conteúdos e dos meios brasileiros continuará nas mãos dos grupos privados hegemônicos. Diversidade cultural sim, mas sem acesso ao horário nobre.

 

Há vida inteligente além do capital?

 

A resposta do presidente se abriga na correção do discurso. Ir não contra ou a favor do mercado, mas além. Exemplifica com a visão de educação do programa de governo: instrumento de produção, organização e difusão de conhecimento e cultura. Como perspectiva, apresenta descentralização de investimentos, integração entre políticas estaduais e alargamento da participação democrática. Vias adequadas, mas definitivamente não sustentadas, como é imprescindível, na visão de orçamento e de articulação ministerial da legenda.

 

Geraldo Alckmin, por sua vez, afirma que com 1% dá. E levanta a bandeira contra o dirigismo cultural para defender uma determinada ação que pretende estabelecer um condicionamento cultural das atividades econômicas e sociais. Se o candidato é contrário ao dirigismo cultural e é democrata, por que considera políticas de regulamentação um constrangimento? O que fará em relação ao dirigismo cultural crônico exercido na televisão brasileira? Por que propõe gerar condicionamentos culturais sobre as atividades econômicas e sociais? Não entendi.

 

(Alguns trechos deste artigo foram originados em entrevista concedida a Carlos Gustavo Yoda para a Agência Carta Maior).

 

http://culturaemercado.locaweb.com.br/setor.php?setor=4&pid=1058

André Martinez

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