Quando um artista pinta um par de sapatos, uma fruteira, uma paisagem, é seu próprio retrato que está pintando. A prova disso é que dizemos um Cézanne, um Picasso, um Renoir, e não um par de sapatos, uma fruteira etc. A idéia, relatada por Jean Marais em Histórias da Minha Vida, se refere ao francês Jean Cocteau (1889-1963), um homem que jamais se contentou com uma só arte, tanto que foi poeta, romancista, dramaturgo, cineasta, pintor, coreógrafo e músico. Mas, se transportada para a figura do poeta e músico Vinicius de Moraes, continua impecável.
O músico genial, fundador da Bossa-Nova, parceiro de Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell, Toquinho, Chico Buarque, Edu Lobo, entre tantos, todos conhecem. O poeta, a verdade é essa, quase ninguém. Sim, nós o recitamos na escola, e às vezes seus versos são usados nas provas de vestibular; e muitos erram as respostas. Sabemos vagamente que escreveu poemas como Operário em Construção e a Balada das Meninas de Bicicleta, que todos conhecem de nome, mas nem sempre de versos. E que são seus versos célebres como “as muito feias que me perdoem/ mas beleza é fundamental”, mas quase ninguém lembra o nome do poema em que eles estão.
E, no entanto, tínhamos tudo para não esquecer. Primeiro porque, como Cocteau, Vinicius foi um artista inquieto, que escreveu poemas, letras de música, peças para teatro, crônicas, crítica de cinema e até um romance – Polichinelo, bastante sofrível, é verdade, e arquivado em seu “baú” na Fundação Casa de Rui Barbosa. Foi compositor e também cantor. Toda essa superexposição, contudo, em vez de ressaltar a imagem do poeta, parece tê-la esmagado. Depois, Vinicius, mais que qualquer outro, foi um poeta que jamais pretendeu se separar de sua poesia, afastar sua imagem pessoal da imagem escrita. Em vez disso, fez da poesia parte da própria vida e, para completar a estratégia, da vida parte essencial do poema. Jogou, portanto, a poesia no mundo – ela que, hoje, parece assunto de especialistas, de doutores da academia, de críticos e artistas, e quase nunca de leitores comuns.
O músico engoliu o poeta. Sim, Vinicius teve sua obra poética relançada, de modo impecável, a partir dos anos 80, pela Companhia das Letras. Foi objeto, nos anos 90, de duas alentadas biografias. Tudo se fez para ressuscitar o poeta – mas quem se levantava das páginas dos livros, no lugar dele, era quase sempre o bon vivant, o show-man, o cantor, compositor, no máximo o letrista estupendo – raramente o poeta genial. Por quê?
É claro, a poesia provoca muito menos interesse que a música popular; sonetos, baladas e versos longos são bem menos sedutores, para a maioria das pessoas, do que sambas, chorinhos e outras canções . É natural, se dirá. O mundo é assim mesmo: um músico, ainda mais um grande anjo gordo, com seu charme com as mulheres e seu incorrigível copinho de uísque, vale muito mais que um poeta, sujeito introspectivo, arredio, solitário – provavelmente um chato. Pode ser. Mas não é. Há uma recusa, grave, que escondeu e continua a esconder o poeta Vinicius de Moraes sob as asas inebriadas, as batas esvoaçantes, as piadas deliciosas, a sedução do músico, do grande músico, Vinicius de Moraes. Médico e monstro? Não, dois médicos; ou, pensando melhor, dois monstros, dois maravilhosos monstros.
Na música popular brasileira, de fato, Vinicius teve um papel crucial, não só como letrista especialmente inspirado, e criativo, mas como mentor daquilo que já aconteceu de mais importante na história da MPB: a Bossa-Nova. Foi um grande letrista, talvez insuperável. Mas temos letristas estupendos na música brasileira moderna, tais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, só para citar três, muito especiais, entre tantos letristas especiais.
Mas, a pergunta retorna: por que essa figura ímpar, que além de letrista inspirado foi também um grande compositor – basta pensar em Ai Quem me Dera, em Pela Luz dos Olhos Teus –, por que ele não pôde, e ainda não pode, ser visto como poeta? Acontece, primeiro, que Vinicius não foi um só poeta: muitos poetas, de escolas, estilos e espíritos diferentes habitaram o cidadão Vinicius de Moraes. É inevitável recordar a piada que ele sempre repetia: “Se eu fosse um só, me chamaria Vinicio de Moral, e não Vinicius de Moraes”. Aluno de padres jesuítas, ele começou escrevendo longos e enroscados poemas metafísicos (como O Incriado), sonetos clássicos (como o Soneto da Madrugada e o Soneto do Amor Maior), poemas de longos versos e idéias sinuosas (como Solilóquio).
Para um menino tímido, atingido brutalmente pelas questões metafísicas e morais impostas pelo catolicismo, a poesia não podia ser outra coisa: devia ser, quase que um subgênero da religião. Não é por outro motivo que a figura da mulher – que mais tarde tanta importância terá na vida e na arte de Vinicius – está quase que completamente borrada, ou “santificada”, nessa primeira fase.
Depois de se casar com Tati de Moraes, a primeira de suas nove mulheres oficiais, felizmente, essa idéia a respeito da mulher mudou completamente. Tati, a genial Tati, com sua formação feminista, suas idéias de esquerda e sua enorme força interior, empurrou Vinicius em direção ao cotidiano e à vida, aproximando-o, não só em sua relação íntima, mas através das idéias e dos versos, das questões carnais. Vinicius se casou em 1939, aos 26 anos de idade, e foi nesse mesmo ano que terminou de escrever as Cinco Elegias, cinco poemas extraordinários que já anunciavam o desaparecimento de um Vinicius e o nascimento urgente de outro. Elas estão entre os melhores poemas que ele escreveu. A partir daí, muitos poetas surgem do coração enfim aberto, destroçado mesmo, do poeta. Vinicius foi o poeta engajado que escreveu a Balada da Praia do Vidigal (Na sombra que aqui se inclina/ Do rochedo em miramar/ Eu soube te amar, menina…”), a Balada do Mangue (“Pobres flores gonocócicas/ Que à noite despetalais”), o pacifista A Rosa de Hiroxima (“Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas”). E o mais célebre dentre eles, O Operário em Construção (“Era ele que erguia casas/ Onde antes só havia chão./ Como um pássaro sem asas/ Ele subia com as casas/ Que lhe brotavam da mão”). Escreveu ainda aquele que é, talvez, o mais belo, e o menos oficialista, poema já criado para a pátria brasileira, Pátria Minha (“A minha pátria é como se não fosse, é íntima/ Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo/ É a minha pátria”).
Vinicius foi um poeta para quem o cotidiano, o presente e o real guardavam um caráter superior, e mesmo mágico, muito mais pujante do que a suposta grandeza da metafísica. Tal aspecto se expressa em poemas que são verdadeiras canções, por sua leveza e elegância. E nunca, mas nunca, deixou de escrever sobre o amor, em todas as suas formas, com todos os seus excessos e derramamentos, todo o seu forte e extravagante lirismo. Basta pensar em A Paixão da Carne (“Envolto em toalhas/ Frias, pego ao colo/ O corpo escaldante”). Poesia e paixão lhe pareciam inseparáveis. Tanto que, uma vez, Vinicius disse: “Os poetas estão faltando porque estão faltando homens em geral. Eles estão com medo da vida”.
Nessa guinada rumo à vida real, uma presença decisiva: a de Manuel Bandeira. “Ele me fez uma espécie de limpeza mental”, Vinicius relataria mais tarde. “Me desmistificou. Tive com ele uma amizade libertadora”. E ele se tornou, para desprezo de alguns e delícia de muitos, o grande poeta do lirismo, um insolente e extraordinário poeta lírico, como nunca a língua portuguesa chegou a produzir. Foi o mais independente e o mais livre de nossos poetas.
E foi esse lirismo, derramado, exagerado, intenso, e às vezes tido como simplório, como “fácil” e “popular”, que o estigmatizou. Vinicius foi poeta em tempo integral. “Entre todos nós, ele foi o único que viveu como poeta”, disse Carlos Drummond, pensando numa geração de poetas exemplares como Cabral, Bandeira, Cecília Meirelles, Augusto Frederico Schmidt e ele mesmo. Alguns, como Cabral, não chegaram a compartilhar dessa posição. O autor de O Cão sem Plumas, certa vez, chegou a dizer: “Não fosse a música, e Vinicius teria sido o maior poeta da língua brasileira no século 20”. O lirismo, que era a base de tudo, podia se transformar também num estigma.
Vinicius, o homem sedutor, viril, mas sensível que, em 1971, numa entrevista, declarou: “Se houvesse reencarnação, para mim, eu gostaria mesmo era de voltar sendo mulher”. E justificou a afirmação: “As mulheres compreendem com a sensibilidade. Esse negócio de lidar com os fenômenos da inteligência não me interessa mais. Não dá em nada”. Não poderia haver declaração mais extrema, mais radical de seu intenso amor pela mulher. Algo que ultrapassava a carne e que chegava a ser, de certo modo, se não uma identificação, uma profunda compreensão. Uma cumplicidade. Em outra entrevista, ele reafirmava o elo decisivo entre poesia e vida, aliança que sempre o norteou. Vinicius diria: “A poesia é tão vital para mim que ela chega a ser o retrato de minha vida. E eu me considero um ser tão imperfeito”. E era dessa imperfeição, dessa inconstância e contínua incerteza, que surgiam os versos. Não para curá-las, como um elixir, ou para encobri-las, como um disfarce, mas para celebrar a fragilidade e beleza da vida.
José Castello é jornalista e autor do livro O Poeta da Paixão – Uma Biografia.