O legado do sertão


O húngaro Sándor Márai encena, no romance Veredicto em Canudos, uma derradeira batalha entre o indivíduo e o mundo

Como se tivesse aparecido num daqueles alfarrábios mágicos que povoam o ficcionário borgiano (embora sem tanto charme), sai no Brasil o romance Veredicto em Canudos, do escritor húngaro Sándor Márai (Companhia das Letras, 176 págs.). Sem nunca ter estado no Brasil, mas fascinado com a história da renhida resistência de sertanejos liderados por Antônio Conselheiro nos confins de um país igualmente longínquo, Márai buscou na edição comentada em inglês de Os Sertões, de Euclides da Cunha, os elementos para reconstruir com a fidelidade possível o sertão baiano. Diante da paisagem e do léxico exótico, isso nem sempre foi possível, e coube ao tradutor Paulo Schiller contornar alguns escorregões. Mas isso pouco importa diante do imaginado e igualmente fascinante apagar de luzes de Canudos, quando o narrador, um velho bibliotecário de São Paulo, ex-cabo do Exército da República, presencia o diálogo bizarro — em inglês — de uma prisioneira do vilarejo, possivelmente uma irlandesa, e o ministro da Guerra, o marechal Carlos Machado de Bittencourt. Num ambiente sufocante, a poucas horas do extermínio total de Canudos, trava-se uma derradeira batalha do indivíduo contra a história, como se o destino do Brasil — ou da Hungria, que seja — se confundisse com o do mundo e de todas as suas dolorosas utopias.

 Por Almir de Freitas

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