O disco quebrou


 

O mercado fonográfico mundial encolheu 30% nos últimos cinco anos, foi chacoalhado pela facilidade digital de copiar discos e viu caducarem seus métodos habituais de fabricar sucessos. Para enfrentar a tormenta, as gravadoras brasileiras têm adotado fórmulas novas, como a taxação em 10% das bilheterias dos shows de seus artistas.

A cobrança do dízimo ainda engatinha, mas já consta da maioria dos contratos de artistas novos da Sony BMG e da Universal, as duas maiores do mercado. Os experientes estão livres da mordida.

“Se estou investindo nos artistas, nada mais justo do que ter uma parte. Mas jamais foi cobrado”, diz Alexandre Schiavo, gerente geral da Sony BMG.

Mas já se ameaçou cobrar, segundo Marcelo Pitta, empresário de Emmerson Nogueira, um dos artistas da gravadora que têm a cláusula da taxação no contrato.

“Ameaçaram porque estávamos meio brigados. Eu disse: “Vão ter que botar um fiscal lá, porque eu não vou trazer dinheiro para vocês”, diz Pitta, que passou a empresariar Nogueira depois de ele assinar, em 2001, o contrato. “O primeiro contrato nunca é bom para o artista, só para a gravadora. Foi o diretor jurídico de uma delas que me disse isso.”

Em caso de cobrança, Pitta diz que recorreria à Justiça. “É cláusula abusiva. Por que [as gravadoras] têm direito de ganhar em show se não investem em show?”

Na Universal, todos os artistas jovens contratados a partir do final de 2004 estão aceitando cláusulas que dão à gravadora o direito de recolher parte do que eles ganham em shows e/ou em publicidade. Estão na lista, entre outros, Isabella Taviani, Negra Li, Jeito Moleque, Juliana Diniz e Marjorie Estiano. “Temos argumentado que é uma necessidade para a sobrevivência do negócio. Ambos estamos investindo. Nos anos dourados da indústria, não era necessário. O que se ganhava vendendo discos era mais do que suficiente”, afirma José Antonio Eboli, presidente da Universal.

“E, quando eles só ganhavam dinheiro, os artistas participavam dos lucros? É maluquice total. Um artista, para encarar isso, não tem cara”, diz Fagner, que nos tais anos dourados, os 90, assinou contratos milionários com Sony e BMG e hoje, como muitos outros artistas experientes, prefere gravar por conta própria e só depois negociar com as empresas.

A Warner não respondeu se prevê a cláusula nos seus contratos. A EMI, embora tenha sido a primeira a adotá-la no mundo (com Robbie Williams, em 2003), garante que não o faz no Brasil.

“Seria legal se isso pudesse ocorrer. Porque precisamos de parceiros para viabilizar os produtos. Não que eu tenha interesse em ganhar no show, mas, se ajudasse a bancar uma parte do disco, seria importante”, diz Marcos Maynard, presidente da EMI.

“Os custos da indústria aumentaram bastante. Assim, os shows e a venda de merchandising tornaram-se novos meios de recuperar dinheiro investido nos artistas. As gravadoras estão dizendo: “Se nós fazemos isso acontecer, também queremos uma parte”, pontua o inglês John Kennedy, presidente da Federação Internacional da Indústria Fonográfica.

Das maiores independentes, Biscoito Fino e Deck Disc negam a prática, mas a segunda reconhece que pensa em experimentá-la ao investir na carreira de Fábio Souza, vencedor do “Fama”, da TV Globo. A ST2 afirma que, “por enquanto”, não ganha em cima do faturamento de shows de seus contratados. “Mas temos um projeto de montar uma divisão para dar apoio aos nossos artistas, até mesmo sendo os empresários deles”, disse Marcelo Affonso, gerente de marketing da gravadora.

“Quase a metade da nossa receita não vem da venda de discos”, diz João Marcello Bôscoli, da Trama. “Vem de patrocínios, de shows, do licenciamento de canções. Colocamos quatro músicas nossas no [game] Fifa Soccer.”

Digital e modismos
A taxação dos shows é conseqüência de uma crise que deixou as gravadoras tateando às escuras em busca de uma saída. Os executivos estão convictos de que há um processo de substituição gradativa dos produtos físicos (CDs e DVDs) pelos digitais, mas ainda não sabem como suas empresas podem manter seus lucros nesse cenário em transformação.

“Temos que continuar investindo no artista novo. Infelizmente, o mercado brasileiro usou e abusou das compilações, dos discos ao vivo, e você acaba viciando o consumidor a comprar produtos de grandes sucessos. Depois vem a síndrome pós-“Acústico MTV”. O artista demora muito a se recuperar”, avalia Eboli, da Universal.

Esse modelo, que contribuiu para o boom dos DVDs em 2004 (aumento de 101% em relação a 2003), está se esgotando, e não ajuda as gravadoras no mundo digital: como os “Ao Vivo” têm poucas canções inéditas, não geram catálogo novo para oferecer em download. Modismos como foram o axé e o pagode nos anos 90 não vêm se repetindo e também não engordam o catálogo.

“Não há um gênero dominante. O que mais tem dado resultado é a MPB de qualidade, com Vanessa da Mata, Marisa Monte, Maria Rita, Ana Carolina. Isso é ótimo, porque mostra a demanda por boa música. Mas dá muito trabalho”, diz Schiavo, da Sony BMG, referindo-se ao fato de que produzir um disco de uma dessas cantoras é muito mais caro do que fabricar um grupo descartável.

O discurso antipirataria continua, mas sem a cólera de outros tempos. Afinal, já se sabe que a hegemonia do meio digital é um horizonte inevitável e que se pode ganhar dinheiro na internet.

O quadro atual é o avesso sombrio da década passada, quando as gravadoras promoviam festas nababescas, fretavam aviões para levar convidados a shows e davam com freqüência adiantamentos a artistas entre US$ 1 milhão e US$ 2 milhões. Graças, principalmente, à equiparação do real ao dólar a partir de 94, as vendas aumentaram em 225% entre 92 e 97.

“[As gravadoras] abusaram. Hoje os artistas e empresários estão cientes da situação e têm sido parceiros”, diz Eboli. A taxação dos shows é uma das “parcerias”.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0604200606.htm

Luiz Fernando Vianna e Thiago Ney

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