Todas as manhãs de domingo, o Museu da Casa Brasileira (MCB) recebe bandas de jazz, samba e música clássica dentro do projeto Música no Museu – iniciativa do Ministério da Cultura que integra música às artes plásticas e demais manifestações culturais. Concebido há nove anos, o programa contempla mais de 30 museus brasileiros. Numa iniciativa semelhante, o MASP – mergulhado em grave crise financeira – convida renomados profissionais de artes cênicas, todas as segundas-feiras, para apresentar leituras dramáticas no projeto Letras em Cena. A implantação de atividades multiculturais nos museus evidencia como expressões de outras nuances começam a se infiltrar, discretamente, nesses espaços (antes restritos ao seu acervo temático), na tentativa de ocupar o vácuo deixado pela baixa visitação em pequenas e médias exposições artísticas.
Para o museólogo, ex-curador do MASP e atual secretário adjunto de Estado da Cultura de São Paulo, Fábio Magalhães, o problema maior é quando atividades que invadem esses ambientes não têm ligação com a arte. “Para não ser entregue às moscas, parte dos museus concordaram em ceder seu espaço para desfiles de moda, salões de automóveis e festas beneficentes pilotadas para agradar possíveis patrocinadores”, declarou em uma antologia que expõe o novo caráter das organizações artísticas nos últimos anos. Na verdade, a mistura de diferentes atividades nos museus é uma propensão mundial, a exemplo do Louvre, Metropolitan, Guggenheim e MoMA, que reservam espaços exclusivos para eventos de toda espécie. Recentemente, o Museu de História Natural de Londres apresentou um espetáculo com a banda de pós-punk britânico The Strokes, junto de sua coleção de fósseis de dinossauros.
Público e arte – De carona nessa tendência, a dúvida é o que mudou no relacionamento entre o público e a arte contemporânea. Cristiana Tejo, coordenadora de artes plásticas da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, arrisca uma definição: “A crise da arte pode ser entendida, entre outros motivos, por sua inadequação às indústrias culturais e à sensibilidade massificada. As artes plásticas não fazem parte da vida das pessoas. A música e o cinema, sim”. De acordo com Tejo, embora as “megaexposições” – como as de grandes mestres da pintura – sejam um meio de implementar a lógica do consumo, as mostras artísticas não são um produto facilmente vendável, o que reduz seu papel nos meios de comunicação a um mero vazio ilustrativo. Isso explica os investimentos sempre mais volumosos em estruturas cenográficas vislumbrantes e com forte apelo comercial, na mesma linha das mega produções hollywoodianas, o que coloca em risco a identidade da própria exposição. “Uma nova ordem de pensamento concluiu que um artista seria mais bem recebido se toda sua produção fosse reunida num megaevento capaz de arrastar multidões para os museus”, observa Magalhães.
Um exemplo concreto da disparidade entre mostras de arte financiadas sob esse conceito e expressões menores aconteceu no Ibirapuera, em São Paulo: em 2004, “Picasso na Oca – Uma Retrospectiva”, recebeu 58 mil visitantes em cinco dias, e atraiu 905 mil pessoas no total, um recorde histórico. Em 2003, a exposição ” Guerreiros de Xi´An e os Tesouros da Cidade Proibida” havia atraído 817 mil expectadores. Enquanto isso, o Museu Paulista, que conserva boa parte do acervo histórico brasileiro anterior a 1900, contabiliza cerca de 350 mil expectadores anualmente, a maior visitação da cidade. O Museu Brasileiro de Escultura (MUBE) e o Museu da Imagem e do Som (MIS), também em São Paulo, recebem, juntos, menos de 60 mil visitas por ano – a mesma quantidade que a OCA reuniu em cinco dias. E não se pode dizer que esses são números típicos de um país emergente: o Museu de História Nacional, na Cidade do México, recebe dois milhões de visitantes anuais. A título de comparação, o Metropolitan, de Nova York, atrai cinco milhões de visitantes por ano.
O artista plástico Ricardo Ramalho, que integrou a curadoria do MAM (Museu de Arte Moderna – SP) por quatro anos e hoje atua em seu próprio espaço, Galeria Favo, na Vila Madalena, acredita que os museus brasileiros carecem de um corpo interno especializado, que estimule artistas, colecionadores, marchands, e o público em geral. “Grande parte dos museus atualmente é gerida por administradores de empresa, que nada tem de tradição artística, o que alimenta um padrão museológico atrasado”. Para Ramalho, não se pode responsabilizar o público pela decadência desses espaços, embora boa parte dele cultive uma postura ambígua. “Muitos brasileiros adoram ir a museus em Nova York, Londres, Paris e Madrid, mas nunca pisaram em um no seu próprio país. Ninguém está acostumado a ver arte no Brasil”, acredita.
Questionado se o público brasileiro realmente assimila códigos de uma cultura restrita a museus e teatros, o professor da Escola de Comunicação de Artes da USP, Luis Augusto Milanesi, observou que as pessoas não gostam do que não faz parte de seu universo sensorial integrado à memória. “Há uma certa perversidade em dizer que o povo não gosta de museu, teatro, ópera e até literatura. Com o sistema educacional brasileiro, não é possível conhecer esse mundo à parte. O público brasileiro é injustiçado por não ter acesso ao conhecimento”. Segundo Milanesi, sem um repertório adequado, não é possível assimilar produções culturais complexas. Mas de acordo com Ramalho, o problema vai além do público e atinge até os mais envolvidos no processo. “Se os próprios artistas não visitam nossos museus, porque um leigo visitaria?”, questiona.
Patrocínio – Com a implantação da lei de incentivo fiscal, as empresas investem mais em cultura, e por conseqüência, estão mais presentes no circuito artístico – uma alternativa viável para evitar os impostos, como fazem entidades bancárias que empregam capital em marketing cultural. Em muitos casos, no entanto, o patrocínio – essencial para exposições – cria dilemas que colocam em cheque o papel da própria arte. Algumas condições exigidas em troca do financiamento à cultura têm ultrapassado os limites do bom senso, como a introdução de espaço publicitário em mostras artísticas, exposições que levam o nome de marcas e, ainda, as próprias marcas como tema de exposição.
O assunto tem gerado polêmica nos jornais e escandalizado parte da elite cultural brasileira. Mas as entidades artísticas se defendem e o assunto cai no esquecimento – ou no costume. Em todo caso, existem maneiras mais discretas de satisfazer o patrocinador, como agregar produtos que possuem pouca relação com a exposição, como lembra Magalhães. “O dinheiro envolvido faz harmonizar, num mesmo espaço, obras de arte e parafernálias que, apesar de sofisticadas, são semelhantes às vendidas em pontos turísticos de qualquer cidade”. Essa invasão mercadológica no mundo das artes é conseqüência direta de duas realidades, que, na verdade, são uma só: a decadência dos museus (e demais entidades) e as novas relações comerciais, que forçam a ocupação dos espaços de arte por interesses de terceiros. É o preço da sobrevivência.