A edição do novo Código Civil, em 2002, introduziu profundas alterações no regime jurídico das associações civis. Eram tantas as adaptações necessárias nos estatutos das entidades sem fins lucrativos – para adequação das entidades às novas regras – que o prazo para adaptação foi sendo sucessivamente prorrogado.
Recentemente, a Lei nº 11.127 – publicada em 29 de junho de 2005 – trouxe novas modificações no regime de organização e funcionamento das entidades sem fins lucrativos. Coerentemente, o prazo para adaptação às novas exigências foi também prorrogado – desta vez, até 11 de janeiro de 2007.
O presente artigo apresentará brevemente quais alterações foram agora introduzidas. Esclarecemos que as entidades que já tenham feito reforma estatutária não precisam, necessariamente, fazer novas alterações no estatuto, como se verá nos itens a seguir. Com efeito, as alterações ora introduzidas no Código Civil conferem maior flexibilidade às organizações. Assim, a entidade poderá manter o estatuto tal como exigia o novo Código na redação anterior. No entanto, as entidades que ainda não tenham feito as alterações estatutárias poderão fazê-las com maior liberdade.
1. Cláusulas obrigatórias do estatuto
O novo Código Civil estabeleceu, no art. 54, cláusulas obrigatórias no estatuto das entidades sem fins lucrativos – assunto sobre o qual o antigo Código, de 1916, silenciava.
A Lei nº 11.127/05 introduziu, no inc. VII, que o estatuto, obrigatoriamente, deve mencionar a forma de gestão administrativa da entidade (o que já estava implícito no inc. V do mesmo artigo em sua redação anterior). Mas – e esta é uma alteração significativa – afastou a exigência de que a competência para aprovar as contas seja da Assembléia Geral – como dispunha o art. 59, inc. II na redação anterior.
Assim, o estatuto deverá dispor explicitamente sobre a forma de aprovação das contas, mas esta competência deixou de ser privativa da Assembléia. Conferiu-se, assim, maior liberdade para a auto-organização da das entidades.
2. Competências e prerrogativas da Assembléia. Deliberações com quórum qualificado.
A alteração do art. 59 do Código Civil é a mais significativa. O Código Civil de 2002 – imbuído do espírito de conferir maiores prerrogativas aos associados – havia estabelecido competências privativas para a Assembléia Geral. No entanto, o mesmo artigo, ao fixar quórum mínimo para algumas dessas deliberações de competência privativa da Assembléia – alterar o estatuto ou destituir administradores – trouxe sérias dificuldades para a administração de muitas entidades. Com efeito, na imensa variedade de associações na vida civil, há algumas que tendem a ser multitudinárias, como os clubes recreativos ou associações de interesses profissionais – cujos membros não necessariamente desejam participar ativamente das deliberações da entidade. Assim, a exigência legal de quórum mínimo, mesmo em segunda convocação, poderia significar, na prática, um engessamento da vida associativa.
Nesse sentido, parece-me salutar a alteração legal ora empreendida. Aparentemente, a alteração se apresenta como retrocesso. Afinal, as prerrogativas da Assembléia e a exigência de quórum mínimo, mesmo em segunda convocação, parecem conferir transparência e maior controle dos associados sobre os administradores.
Ocorre que a constituição e funcionamento de organizações inserem-se no princípio de liberdade de associação. Cada associação, em princípio, é livre para reger-se da forma como seus associados decidem. Naturalmente, aquelas organizações que desejem reconhecimentos como de “utilidade pública” ou “interesse público” haverão de adequar seus estatutos às limitações impostas nas normas que regem a outorga de títulos, que restringem, de certa forma – e com razão – a autonomia dessas organizações.
Contudo, inúmeras entidades – de benefício mútuo, por exemplo – que são relevantes socialmente, mas que não se voltam primordialmente para a atenção do público em geral – devem ter respeitado seu direito de livremente se organizar, sem amarras desnecessárias e até mesmo arbitrárias.
3. Exclusão de associados
O Código Civil de 2002 expressou em diversos dispositivos a preocupação de conferir maiores prerrogativas aos associados. Nessa linha, estabeleceu critérios para impedir exclusão arbitrária de associado do quadro de membros da entidade. Pode-se inferir do dispositivo em tela a proteção de um “direito da personalidade” – honra, reputação – que o estigma de “associado expulso” poderia acarretar. Assim, a redação do art. 57 restringia a exclusão às hipóteses de justa causa – devidamente expressa no estatuto – ou motivos graves, em deliberação fundamentada pela maioria absoluta dos presentes em assembléia geral especialmente convocada para esse fim. E mais: caberia recurso à assembléia da decisão de expulsão. A nova redação – simplificada – me parece positiva. Exige justa causa e procedimento que assegure ampla defesa, cabendo recurso nos termos do estatuto. É positiva a expressa menção à ampla defesa. A nova redação também elimina certa inconsistência da redação anterior (recurso ao órgão que, no caso de expulsão por motivos graves, seria o mesmo que decidiu a expulsão). Por outro lado, ainda que se tenha subtraído, na nova redação, a expressão “motivos graves”, certo é que o próprio estatuto pode estabelecer a previsão. A exigência de quórum mínimo em convocação específica, ora excluída, representava uma excessiva interferência da lei no regime de funcionamento da organização.
4. Direitos dos associados
Ainda uma alteração, que amplia o direito dos associados, deve ser notada. Trata-se da nova redação dada ao art. 60, que havia introduzido a possibilidade de um quinto dos associados promoverem a convocação de assembléia geral. Na nova redação, esse direito é conferido não apenas em relação à assembléia, mas em face de outros órgãos deliberativos, como seria, por exemplo, a Diretoria, ou outros órgãos, que, de acordo com o estatuto, tenham poderes de decisão.
Observo que essa mudança não exige que as entidades que já fizeram sua reforma estatutária a refaçam, tendo em vista a nova redação dada ao dispositivo. Isto porque ainda que no estatuto não conste o direito de os associados promoverem a convocação de órgãos deliberativos, o direito já fica assegurado pelo teor da própria lei.
5. Conclusão
As alterações introduzidas no regime de organização e funcionamento das associações civis de acordo com a Lei nº 11.127/05 parecem-me positivas, pois reduzem a excessiva interferência que a legislação impunha ao funcionamento dessas entidades. Com efeito, a interferência legal no regime e funcionamento das associações só se justifica na medida em que essas entidades se relacionem com o poder público ou com o público em geral. No caso de entidades que pleiteiem títulos ou reconhecimentos oficiais, a imposição de padrões parece-me coerente e salutar. Assim, por exemplo, aquelas entidades que desejam obter a qualificação como OSCIP devem observar normas de gestão democrática e instituir um Conselho Fiscal, tal como exigido pela Lei nº 9.790/99. No entanto, a imposição de restrições dessa ou de outra natureza a todas as associações da vida civil, com direta interferência em sua administração, não me parece coerente com o princípio da livre associação para fins lícitos. Por isso mesmo, o antigo parágrafo único do art. 59 do Código Civil já era objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade promovida pela Associação de Magistrados Brasileiros. Lamenta-se apenas que, após denodados esforços para adaptação dos estatutos aos difíceis critérios estabelecidos pelo Código Civil, na redação anterior, tantas entidades tenham engessado sua administração desnecessariamente. De qualquer modo, a flexibilidade introduzida é positiva, podendo a qualquer tempo ser aproveitada também pelas entidades que já fizeram sua reforma estatutária. As entidades que ainda não hajam adaptado seus estatutos ao novo Código devem fazê-lo até janeiro de 2007.