Há mais de um ano, o Dicionário Machado de Assis, de José Carlos Ruy, está pronto na Editora Garibaldi à espera de publicação. Por razões que desconhecemos, não temos notícia do dicionário aguardado pelo mundo culto do Brasil.
O valor da obra, o valor da grandeza do historiador e escritor José Carlos Ruy, exige a sua urgente publicação. O que falta à editora para lançar o Dicionário no mundo? Não sabemos a razão. Neste 29 de setembro, lembramos o dia do falecimento de Machado de Assis. Mas a sua obra está viva, assim como seu maior dicionário, apesar de inédito. Daí que divulgo o prefácio que escrevi para a última obra de José Carlos Ruy.
A obra de Machado de Assis em dicionário
O livro que os leitores vão ler é uma dádiva, ou uma bênção, como o chamariam os evangélicos brasileiros. Mas nós, leitores de todas as crenças, chamamos de presente, ou uma eloquente manifestação de carinho, doação e respeito de um clássico do pensamento livre do Brasil, José Carlos Ruy, sobre outro clássico do pensamento livre, do valor universal da nossa literatura, Machado de Assis.
Esta obra é um presente em mais de um sentido. José Carlos Ruy, falecido em 2 de fevereiro de 2021, de surpresa, do coração traiçoeiro, aqui se faz presente ao mesmo tempo que nos encanta. Ele próprio era um intelectual encantador por sua gentileza e generosidade que fazia amigos como um caráter natural da sua pessoa. Ele que era um homem-ponte entre amigos e culturas. Não escrevo à toa e já digo por quê.
José Carlos Ruy, com a sua modéstia, me falou por email em dezembro de 2020 que este livro possuía “além de uma apresentação do Machado, a apresentação de algumas opiniões dele sobre tudo, e a descrição dos 1065 personagens da sua obra”. No entanto, ele produziu uma obra basilar, fundamental, para grandes e pequenos leitores de Machado de Assis. O livro que ele agora apresenta ao mundo é uma orientação de estudos sobre Machado para todos os estudantes universitários e colegiais, além de fonte de pesquisa para doutores de nossas universidades. Se não me expresso mal, José Carlos Ruy fez um trabalho de Kepler, aquele incansável cientista que descobriu as leis gerais do que parecia ser uma barafunda do sistema solar.
Neste livro podemos ver, como se fossem leis humanas e gerais de Machado de Assis, como o próprio Ruy se tornou um clássico. O conhecimento que ele tem de e sobre o nosso maior escritor é flexível e criador. José Carlos Ruy não reduz, não limita a sua compreensão a um aspecto só, como tantos outros. Ele é dialético, esta é a palavra: dialético, porque capta o movimento do fenômeno e lança luz sobre o contraditório.
Nas fases da ditadura no Brasil, sempre se comparam Machado de Assis e Lima Barreto. Nas fases de ausência de liberdade, cresce o nome de Lima Barreto. Nas fases democráticas, é valorizado Machado de Assis. Mas os dois não têm que se opor. Não podem nem devem, São escritores diferentes, com marcas diferentes. Então, neste período de perseguição ao pensamento livre no Brasil, de ameaça de golpe fascista, o dicionário de Ruy vem e descobre informações raras, geniais do Machado de Assis falando sobre a escravidão. E eu me disse: “É danado. Isso estava o tempo todo diante de mim e eu não vi”.
Por exemplo, aqui:
“Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes de minuto a minuto. Nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados. – Matá-lo? – Antes assim fosse. – Coisa pior? – Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse. (O espelho, 1882)”.
Ou nesta crueldade:
“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. (Pai contra mãe, 1906)”.
José Carlos Ruy escreveu, com este Dicionário, um livro de referência sobre Machado de Assis.
Até onde sei, ninguém lançou até hoje um dicionário dos personagens e coisas de Machado.
Mas olhem só. Para escrever este dicionário de Machado e Assis, um leigo, ou um apressado, um preguiçoso, teria ido aos livros de Machado de Assis, copiado e colado. Mas com Ruy é diferente. O seu extraordinário poder de síntese, a sua sensibilidade em localizar o elemento definidor de um personagem, ocorre nos verbetes deste dicionário. Como aqui:
“Nóbrega – Foi coletor de esmolas para a Igreja. Encontrou Natividade e Perpétua na Rua de São José quando elas foram consultar Bárbara. Ele ficou com a nota de 2 mil réis que Natividade deu de esmola. Aplicou e multiplicou o dinheiro. Poucos meses depois, deixou de ser coletor de esmolas e mudou de carreira. Deixou a cidade; quando voltou, tinha alguns pares de contos de réis, que a fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Ganhou dinheiro na especulação, do “encilhamento”. Era outro; as feições não eram as mesmas, senão as que o tempo lhe veio compondo e melhorando. (Esaú e Jacó, 1904)”
Nos ensaios que precedem este dicionário de personagens e coisas de Machado de Assis, Ruy escreve contra os leitores preconceituosos apressados, que se referem ao escritor mal lido, e por isso mesmo difamado como um homem que se alienou, ausente dos problemas cruciais da sociedade brasileira. Essa estupidez caricatural sobre o nosso imenso criador primeiro acredita que é possível boa literatura sem imersão na realidade. E nesse caso, Machado seria um bom escritor, mas…. Esse “mas” seria tudo. José Carlos Ruy é contundente:
“Machado de Assis foi, em seus escritos, um crítico severo da sociedade brasileira, da elite cujos costumes descreveu com palavras muitas vezes duras e implacáveis.
Nunca aceitou a escravidão, e em seus escritos há várias passagens onde condena com veemência esse sistema iníquo. Como pensador e escritor, acreditou na igualdade de todos os homens, e deixou vários registros dessa crença – opinião que inclusive o levou a uma rara manifestação pública, ele, normalmente tão reservado e que só dava opiniões em seus escritos”.
Há muitos trechos onde Ruy mostra o Machado de Assis partidário da democracia fraterna, mas a urgência deste prefácio para o valor deste dicionário me faz pular para outra iluminação.
Todos sabemos que os difamadores de Machado de Assis passam sempre ao largo da paisagem humana da literatura, que não fala como um manual didático sobre a canalhice, hipocrisia, traição, arrivismo e exploração maldita sobre pessoas. O escritor fala sobre homens e mulheres que não dizem de si nem para si mesmos: “eu, canalha, eu, ladrão, eu, traidor, eu, prostituta, eu, assassino de escravos”. Seria absurdo no mundo real e na melhor literatura. O ficcionista fala pelos personagens, com os personagens, indivíduos caídos nas maiores degradações, que por vezes são comentados pelo narrador na primeira pessoa com desilusão irônica:
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.
E nesta altura, para tamanha tarefa de mostrar, divulgar e descobrir o Machado de Assis nos seus personagens e coisas, afirmo que o trabalho de Ruy é admirável, digno de figurar em todas escolas e universidades do Brasil e do exterior. Como já ressaltei antes, José Carlos Ruy não faz o copia e cola, o que já seria um trabalho imenso, pois teria pesquisado, classificado e organizado em ordem alfabética as pessoas e coisas de Machado. Se ficasse nisso, já seria indispensável. Mas não. Ele pesquisou, leu, refletiu e pôs descascadinho, pronto, o nosso maior escritor, mas como uma fruta descascada que antes de ser digerida exige a paciente mastigação. Como aqui:
“Camila – É daquela casta de mulheres que riem da idade. É bonita e deixa às outras o trabalho de envelhecer. Tem cabelo negro e olhos castanhos; as espáduas e o colo feitos de encomenda para os vestidos decotados. E um certo instinto que a beleza possui, junto com o talento e o gênio. É casada com um viúvo, honesta não por temperamento, mas por princípio, amor ao marido e um pouco por orgulho. Vive principalmente com os olhos na opinião. Entrou na casa dos 30 anos de idade e não lhe custou passar adiante. Duas ou três amigas dizem que ela perdeu a conta dos anos, sem perceber que a natureza era cúmplice, e que aos 40 anos Camila mantém um ar de 30 e poucos. Quando surgiu um pretendente para a filha, ficou prostrada: viu iminente o primeiro neto, e determinou-se a adiar o casamento da filha. (Uma senhora, 1884 )”.
Veem que primor de resumir uma personagem da obra machadiana, onde a interpretação do pesquisador não trai nem falseia Machado?
Em resumo, aprendi muito sobre o Machado de Assis guiado pelas mãos de José Carlos Ruy. Não poucas vezes ri, gargalhei e fiquei a pensar em silêncio. Podemos dizer agora que conhecemos Machado de Assis. Para todos nós, que julgávamos conhecê-lo antes deste Dicionário.
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