Luxo e Tédio

 

É possível explicar o tédio dos jovens abastados pelo cogito pós-moderno: tenho, logo não erotizo? Nietzsche, em seu desabafo cáustico, registrou a descrença na humanidade. Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo muito bem. Uma das características de nossa sociedade é a ausência de paradigmas, o que aponta para uma transformação no saber. O saber, ao se transformar, transforma também o sujeito. A ciência atual, ao absolutizar o corpo biológico, desconsidera que o corpo humano é um corpo atravessado pela linguagem. A quem interessa a instrumentalização do corpo? Os laboratórios, ao reduzir a clínica em abordagem psicofarmacológica, desnudam o sujeito de seu corpo erótico. E criam o indivíduo viciado e dependente dos psicofármacos, o que lhes garante alta rentabilidade. O mundo está assim por ter escolhido como projeto civilizatório a acumulação de riquezas. A questão é política. A determinação do capitalismo é que o capital acumule cada vez mais, independentemente se para isso ele gera o deprimido, o toxicômano ou o criminoso. A violência acusa uma ausência de simbolização, um vazio e uma falha no laço social. No laço social, tudo que a cultura não simboliza emerge em ato.

 

A quem interessa a pobreza? Sem ela não existiria riqueza. É ela que possibilita comparar e competir. A igualdade não atrai ninguém. Precisamos dos pobres para nos sentir poderosos e vencedores. O rico só tem raiva do pobre, quando ele atrapalha, mas, no geral, adora o pobre, pois é quem alimenta o seu narcisismo. Imagine o que seria das madames sem as empregadas domésticas. Sempre me indignei com a desigualdade, a exclusão e a injustiça. Nasci vendo isso acontecer o tempo todo. Padres e freiras excluindo pobres e negros. Pais privilegiando os filhos homens em detrimento das filhas mulheres. Ricos manipulando e explorando os mais pobres. E a saída que encontrei para aliviar a consciência atormentada foi tornar-me socialista, marxista, feminista. Como nada disso resolveu, fui buscar na psicanálise a “paz interior sonhada”. É quando descubro que existe uma ordem mundial para que tudo continue assim. A pobreza tem a função precípua de sustentar a riqueza. Por isso ela não cede. E se ela não diminui, as conseqüências de um mundo cada vez mais injusto e desigual também continuam.

 

A arte é uma boa forma de resistir à miséria existencial do mundo

 

E, hoje, como os jovens estão reagindo a tudo isso? Revoltam-se oferecendo o próprio corpo? Vivem as autopunições? Oferecem-se ao tráfico, ao ecstasy, ao sexo vazio, às roupas de grife, às festas raves, ao tédio e à depressão? Quais as saídas que a sociedade oferece a um jovem? Drogas, sexo, shopping e faculdades particulares paternalistas e fracas, nas quais o ensino é vendido como mercadoria de terceira categoria? Uma existência repleta de consistência simbólica tornou-se para os jovens contemporâneos um grande desafio. Como romper a ordem dos ricos e famosos? Onde buscar um sentido para a vida? Com quem estabelecer um papo-cabeça, interessante? O que fazer se o jovem não for fútil e inconseqüente? É claro que existem saídas, mas elas são exceções. Lolita Pille, uma parisiense de 22 anos, autora de Hell e Bubble gum, confessa que escreve por ter raiva do mundo atual, de suas babaquices. Reclama dos reality shows, que considera uma péssima influência, como critica o mundo dos VIPs na França: “Temos um cartão de crédito no lugar do cérebro, um aspirador no lugar do nariz; e nada no lugar do coração. Vamos às boates muito mais do que às aulas, temos mais moradias do que amigos de verdade e 200 números de telefone nos nossos caderninhos para os quais nunca ligamos”. Isso comprova que saídas existem, e uma delas é a recusa em fazer parte da lama (do luxo que é lixo) que o mundo atual insiste em mergulhar os jovens.

 

A arte é uma boa forma de resistir à miséria existencial do mundo. E um jeito de reivindicar consistência interior. A literatura ajuda a expressar a força que pulsa e incomoda. A questão é captar o incômodo, o mal-estar, a força que pressiona. Através da literatura, expressamos sentimentos que não conhecemos ainda. A juventude grita. O berro sai da forma possível. E melhor seria que saísse pela arte, pelo belo. O grito é a tentativa de se fazer ouvir, de tornar visível o invisível. O que eles buscam é romper o silencio afetivo, como acontece no processo analítico, quando temos a irrupção do afeto que expõe o inconsciente. É algo que sai e desestabiliza a organização do sujeito. É o recalque que rompe. É o jovem que busca a surpresa, para com ela se sentir vivo. Surpreender-se é a base do tratamento psicanalítico. Com Lolita foi algo que desejava sair para destroçar a mesmice e a mediocridade do cotidiano dos ricaços sem escrúpulos. Em alguns jovens o eu irrompe e faz rasgos. Rasgos que culminam em obras de arte. É quando produzem subjetividades inusitadas. Imagens que metaforizam a pobreza ética e estética da sociedade que vivem. Lolita, com seu grito de raiva denuncia a ética dos ricos, quando tentam impor uma liberdade sem desejo, uma historicidade sem história. A jovem, ao transformar a raiva em literatura, faz arte com sua própria cadeia simbólica. A tarefa é de nomear o inominável. Nos processos estéticos como nos analíticos, subjacente ao desejo de metaforizar o que existe é a necessidade de produzir com o simbólico. Tentar tocar o real. O tamanho da dor determina a altura do grito.

 

O iluminismo introduziu uma nova weltanschauung (visão de mundo), registrando paradoxos da literatura, da vida. Como conciliar razão e emoção, autonomia e obediência? Em 1774 inicia-se o movimento Sturm und drang (tempestade e ímpeto), que vem chamar atenção para as questões da adolescência. A ciência vai apropriar-se do movimento para elaborar seus conceitos sobre as vicissitudes da sexualidade na adolescência. Em As pulsões e seus destinos, deparamos com um Freud contaminado pelo discurso do movimento, usando algumas expressões para conceituar a vida pulsional. Sturm und drang representa o protesto dos jovens contra o racionalismo iluminista alemão. O campo da linguagem acolhe a libido dos poetas, dos escritores. Esse campo de expressão confirma a noção lacaniana: “o inconsciente é estruturado como linguagem”. É o grito dos jovens reivindicando o poder das palavras, a via da significação e contra o cientificismo. Muitas vezes a adolescência precisa da psicanálise. Ela clama por parceiros nessa travessia. Parceiros para elaborarem sua concepção de mundo, de luto, de amor. “Aquele que tem ciência e arte tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!” (Goethe). Parceiros esses ancorados na função paterna e unidos nesse momento do encontro do sujeito faltoso com o real do sexo. Freud já havia chamado a atenção para a passagem traumática da puberdade. Freud se deixava contaminar pela literatura. Ele estava interessado no sujeito excluído da ciência, da medicina neurologizante que predominava na Alemanha do século XIX.

 

“Que desgraça, Guilherme! Perdi toda a energia, vejo-me caído numa inquieta indolência; não posso fazer coisa alguma. Já não tenho imaginação nem sensibilidade; a natureza já não me impressiona, e os livros me entediam.” Essa passagem de Goethe em Os sofrimentos do jovem Werther nos fala da angústia do jovem diante da impossibilidade do amor. O jovem se defrontando com o real do amor, do desejo e do sexo. O desespero diante da tragédia humana. A dor do desamparo e da incompletude do ser. Werther depara-se com as perdas fundantes da condição humana. Perdas inerentes à adolescência, como a da liberdade e a tranqüilidade da infância. E a descoberta da contradição entre ternura e sexo, a perda do ideal de completude. A pulsão decorre da relação com o outro, o que equivale dizer que ela migra de bios para ethos. O percurso da trajetória da pulsão para a sublimação é efeito da mudança da finalidade que deixa de ser sexual. Aqui o objeto sofre uma idealização, que pode engrandecê-lo, elevá-lo à condição de coisa. Goethe revela essa consciência, ele encarna a idealização na criação. Pela via da sublimação o sujeito cria a coisa, o objeto inacessível que não existe, demarcando sua ausência e tornando-a presente na obra de arte. O artista, no ato da criação, encontra a satisfação dessexualizada, ao contornar o objeto. No sentido metafórico, a sublimação é o encontro com a alma, propiciando sua purificação.

 

A capacidade de sublimação de um povo revela parte dos ideais de sua sociedade. E a ausência denuncia sua pobreza simbólica. A juventude, ao tentar recusar o tédio através da violência, revela um gozo. E sabemos que se goza exatamente onde não se consegue simbolizar. Se a ciência e o saber médico contemporâneo preferem o sujeito (atravessado de sentimentos, histórias, fantasias) distante de seus paradigmas de saúde, significa que o laço social deve se realizar não pelo bem-dizer, mas pelo nada-dizer. É o homem excluído (ou foracluído, na terminologia lacaniana) de seus significantes, solto e jogado na vala da anomia. É quando o sintoma entra no lugar da lei, o gozo no lugar do simbólico, e o sujeito entra apenas com o sofrimento e a dor. Do resto ele é dispensado. O sujeito que interessa à neurociência é o sujeito dessubstancializado. Aquele que faz laço social com pathos. Como denuncia Hell: “A humanidade sofre. E eu sofro com ela”.

 

 

Inez Lemos

 

 

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