O cantor Luiz Melodia faleceu na madrugada desta sexta-feira, no Rio, por volta das cinco horas da manhã, em decorrência de complicações de um câncer que atacou a medula óssea. No começo de junho, ele havia recedido alta do hospital Quinta D’Or após 3 meses internado. O corpo do artista será velado nesta sexta-feira, na quadra da Estácio de Sá, na região central do Rio.
Filho do funcionário público Oswaldo Melodia e da costureira Eurídice, Luiz Carlos dos Santos foi criado em local de história nobre e IDH cronicamente pobre: o morro de São Carlos, no Estácio, bairro conhecido como berço do samba – onde Ismael Silva fundou a Deixa Falar, pioneira das agremiações carnavalescas cariocas.
Artistas e amigos homenageiam Luiz Melodia na web
Acostumado desde os 8 anos a ser arrastado pelo pai, músico amador, para as rodas boêmias da região, ele cresceu sem se prender exclusivamente à tradição local de samba, seresta e choro. A partir dos gostos paterno e materno, aprendeu a curtir boleros de Anísio Silva, o samba dor-de-cotovelo de Lupicínio Rodrigues e a música nordestina de Gonzagão e Jackson do Pandeiro.
Mas a janela para o mundo se abriu mesmo com programas como “Hoje é dia de rock”, que Jair de Taumaturgo comandava na Rádio Mayrink Veiga desde o fim dos anos 50. Aos poucos, o menino que sonhava em ser ponta-direita do Vasco foi tragado pelo iê-iê-iê da vizinhança (a rua Haddock Lobo, reduto da Jovem Guarda, começa no Largo do Estácio) e montou conjuntos semiprofissionais para embalar bailinhos nas comunidades da área. Houve Os Instantâneos e Os Filhos do Sol, que tocavam tudo que fosse necessário para animar uma festa, com inglês de puro embromation.
Melodia também freqüentou programas de calouros, com relativo sucesso: na rádio Mauá, ficou em primeiro lugar em um concurso com sua interpretação de “Rosita” (de Francisco Lara e Jovenil Santos), faixa do LP “Roberto Carlos Canta Para a Juventude”, de 1965.
Suas primeiras composições eram ingênuas. Aos poucos, porém, o fã do romantismo bubblegum de cantores como Chris Montez foi incorporando influências mais modernas: do Nat King Cole que ouvia na vitrola do tio passou para o blues de Taj Mahal e, principalmente, o tropicalismo.
Quando conheceu três irmãs que tinham recém se mudado para o São Carlos, veio a ponte com um dos elementos centrais dessa turma, o poeta, compositor e agitador cultural Waly Salomão – que, por sua vez, fazia incursões ao local arrastado pela curiosidade e inquietude de Hélio Oiticica.
Ele e o jornalista e letrista Torquato Neto o levaram para a órbita da poética moderna de Caetano e Gil, a liberdade inventiva de Jards Macalé… e a casa de Gal Costa, então musa do desbunde. Foi lá que, sob os olhares desconfiados da mãe da cantora, Melodia encantou a todos com uma composição. A música já tinha, então, o dedo de Waly, que havia sugerido a troca do tratamento “my black, meu nego” por “Pérola Negra”, que era o apelido de um travesti da área chamado Adílson.
A verdadeira inspiração, porém, tinha sido uma moça que, depois do relacionamento com Melodia, namorou Waly: a primeira branca dasa conquistas amorosas do garoto que estudou somente até a sexta série ginasial (atual ensino fundamental).
Melodia desceu o morro para andanças na Ipanema hippie com intelectuais, adotado pela turma da zona sul e pelos baianos, sob o guarda-chuva do empresário Guilherme Araujo. Em janeiro de 1972, trazia um toque de estranhamento à ortodoxia do show “A Fina Flor do Samba”, que também tinha entre suas atrações Candeia. Só meses depois, em abril, no Teatro Opinião, é que lhe foi permitido desfraldar a própria bandeira, em espetáculo batizado “Estácio Blues”. No fim do ano, Maria Bethania gravou sua “Estácio holly Estácio”, e chamou a atenção do Brasil para aquele jovem compositor, talvez o primeiro grande talento a sair do morro já conectado com a onda globalizante do iê-iê-iê e com os processos tropicalistas.
Luiz Melodia tinha só 22 anos, quando lançou, em 1973, seu álbum de estreia, “Pérola negra”, com produção e arranjos do baiano Perinho Albuquerque, que assina como diretor musical. Reputado como um dos melhores discos da MPB de todos os tempos, o trabalho atirava certeiramente em várias direções, do “Forró de janeiro” aos hibridismos com jazz e blues que deram identidade a Melodia ao longo da carreira, brilhante em composições como “Magrelinha”, “Objeto H”, “Abundantemente morte”, “Estácio holly Estácio”, além da faixa-título. A ficha técnica reunia desde o regional do violonista Canhoto e o flautista Altamiro Carrilho, no samba-choro “Estácio, eu e você”, até a guitarra soul/rock de Hyldon, sob arranjo de Artur Verocai, em “Prá aquietar”.
Consolidado a partir de ótimos discos como “Maravilhas contemporâneas” (1976), que trazia outros dois clássicos de sua autoria, “Juventude transviada” e “Congênito”, e “Mico de circo” (1978), que emplacou sua gravação consagrada de “A voz do morro”, de Zé Keti. Nos anos 1980, com discografia menos inspirada, seguiu compondo pérolas como “Só” e se firmou-se como intérprete, a partir de sua gravação de “Negro gato” (Getúlio Côrtes).
Melodia atravessou a década seguinte com shows de sucesso, inclusive na Europa, espraiando-se musicalmente por samba-funk, reggae e samba nos moldes ortodoxos. Tudo sem deixar de brilhar como canário, em regravações populares como “Codinome beija-flor” (de Cazuza, Ezequiel Neves e Reinaldo Arias) e “Broto do jacaré” (Roberto e Erasmo).
Entre projetos de releituras, acústicos e DVDs ao vivo, viveu ótimos momentos no século 21. Mas ficou 13 anos sem lançar projetos autorais, jejum interrompido em 2014, com seu último disco, “Zérima”. O disco rendeu elogios da crítica e lhe valeu o reconhecimento como melhor intérprete no Prêmio da Música Brasileira, em 2015.
Deixa a viúva Jane Reis, sua empresária e cantora, e o filho Mahal, rapper.
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