Junta-Cadáveres é Reeditado

 

Há um quarto de século Flávio Moreira da Costa traduziu Junta-Cadáveres (para a editora Civilização Brasileira), essa perturbadora novela do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994). Junta-Cadáveres ainda hoje pode ser lida como uma alegoria do continente sul-americano, contaminado pela corrupção e obcecado pelo bordel. Justamente quando o Brasil olha seu reflexo distorcido nesse espelho, com mensalão, malas de dinheiro, depósitos ilícitos e suspeitas festinhas de políticos, Junta-Cadáveres (Planeta, 320 págs, R$ 39,90) volta em nova tradução, de Luís Reyes Gil.

A nova edição traz como bônus um prefácio esclarecedor de Francisco Dantas, em que o escritor sergipano (de Sob o Peso das Sombras) destaca o papel de Faulkner como “mestre reverenciado de Onetti”.

De fato, Faulkner foi não apenas um mestre, mas a obsessão maior de Onetti, que se definia como um “contumaz plagiário” do autor americano, o que pode ser comprovado quando se compara Junta-Cadáveres ao conto A Rose for Emily.

Neste último, Faulkner contrapõe a natureza dinâmica do tempo à congelada natureza da memória. São histórias distintas com um tema em comum: a derrocada social do indivíduo (o ex-presidiário Larsen, criado por Onetti, e a velha Emily, de Faulkner). Massacrados pela comunidade em que vivem, ambos pagam com o sangue a conta imposta pelo poder constituído. Faulkner transforma Emily numa relíquia do passado, que morre impotente diante da decadência sulista. Onetti não faz mais por Larsen, que, em Junta-Cadáveres, paga “mensalão” a um político corrupto, a fim de criar o prostíbulo “ideal” em Santa Maria.

Cidade inventada pelo escritor uruguaio – como a Comala de Juan Rulfo ou a Macondo de García Márquez, territórios onde a vida assume a dimensão de uma fábula -, Santa Maria é o lugar onde Judas perdeu as botas. É a Yoknapatawpha de Faulkner, condado do Mississippi que, por trás da aparência respeitável de seus habitantes, esconde mais lama que todas as cidades sulistas juntas. Onetti revisitou Santa Maria em diversos livros, entre eles El Astillero (breve lançamento da Planeta).

Escrito em 1961, três anos antes da publicação de Junta-Cadáveres, El Astillero traz Larsen como um pobre arremedo de Flem Snopes, o alpinista social faulkneriano que começa a vida como filho de um ex-ladrão de cavalos e encontra a morte como banqueiro (em The Mansion).

No entanto, o escritor Mario Benedetti, conterrâneo de Onetti, via uma diferença fundamental entre seu alpinista e o de Faulkner. Cada personagem do americano traria em si a própria fatalidade, segundo Benedetti. Em Onetti, essa seria coletiva e o escritor, ainda de acordo com ele, teria como meta descobrir a razão dessa fatalidade.

Já nos anos 1930, muito antes de Sartre e seus asseclas, quando iniciou sua carreira literária, Onetti falava em náusea e tédio existencial. É bom que se diga que a vida contribuiu um bocado para essa filosofia antecipatória: Onetti conheceu muitos dos seus miseráveis personagens nas ruas, levando-os para a imaginária Santa Maria.

O Larsen de Junta-Cadáveres não é exceção. O proxeneta chamava-se mesmo Junta Larsen, segundo um colega do El Mundo, Francisco Satue. O Junta (cadáveres) do título foi visto por Onetti chorando num cabaré, entre cortinas sujas, garrafas de bebida e muita fumaça. Antevia, talvez, o futuro do personagem em que iria transformar-se: um velho desiludido, alvo preferencial da violência circundante. Para poupá-lo da mortalidade, Onetti resgatou sua dignidade numa saga que começa com El Astillero e continua com Junta-Cadáveres.

Nesta última novela, o desesperado Larsen, mestre dos projetos falidos, desembarca no território da ambigüidade (Santa Maria) e tenta a última cartada. É nesse ambiente, corrompido pela sordidez, que se revela a natureza saturnina do protagonista.

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