Em bora a independência política do Brasil tenha sido um “arranjo político”, segundo a expressão do historiador Caio Prado Jr. ela implicou uma acirrada luta social. Várias camadas sociais disputavam a liderança, desejando imprimir ao movimento libertador o sentido que mais convinha e interessava a cada uma. No final, venceu a aristrocacia* rural dos grandes proprietários escravistas.
As divergências
Para compreender o processo de independência precisamos partir do projeto recolonizador das Cortes, pois foi por causa dele que se definiram vários grupos. O “partido português” era inteiramente a favor. O “partido brasileiro” e os liberais radicais eram contra, mas divergiam quanto aos objetivos a serem atingidos.
Para o “partido brasileiro” o ideal era a criação de uma monarquia dual, para preservar a autonomia administrativa e a liberdade de comércio. A intransigência das Cortes fez, no entanto, esse partido inclinar-se pela emancipação, mas sem alterar a ordem social e os seus privilégios.
Os liberais radicais formavam um agrupamento potencialmente revolucionário e estavam mais próximos das camadas populares urbanas. Alguns deles eram republicanos e, em seu conjunto, eram o grupo mais receptivo às mudanças mais profundas e democráticas da sociedade.
A Regência de D. Pedro e a Ruptura Definitiva
A situação do Brasil permaneceu indefinida ao longo de todo o ano de 1821. Mas, em 9 de dezembro, um fato novo começou a modificar o cenário. Nesse dia chegaram ao Rio de Janeiro os decretos das Cortes que ordenavam:
a abolição da regência e o imediato retorno de D. Pedro a Portugal;
a obediência das províncias a Lisboa e não mais ao Rio de Janeiro;
a extinção dos tribunais do Rio de Janeiro.
D. Pedro aparentemente resignado, começou a fazer os preparativos para o seu regresso.
Entretanto essa decisão das Cortes gerou uma onda de inquietação muito grande. Os funcionários públicos estavam ameaçados de perder seus empregos com o fim das repartições em que trabalhavam. O “partido brasileiro” ficou alarmado com a recolonização iminente, mas também com a possibilidade de uma explosão revolucionária incontrolável.
Essa nova situação favoreceu a polarização: de um lado o “partido português” que defendia a recolonização, e, de outro, o “partido brasileiro” e os liberais radicais, que passaram a agir abertamente pela independência.
No Ro de Janeiro organizou-se o Clube da Resistência, liderado por José Joaquim da Rocha, que começou a luta pela permanência do príncipe. A tática consistia em conquistar D. Pedro para a causa da independência e conseguir também a adesão das províncias.
Primeiro, foi feita uma sondagem junto ao príncipe, que se mostrou receptivo à idéia. São Paulo para obter a adesão à causa emancipacionista, com resultados positivos.
No Rio de Janeiro foi elaborada uma representação (com coleta de assinaturas, cerca de 8.000) em que documento foi entregue a D. Pedro no dia 9 de janeiro de 1822, por José Clemente Pereira, presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Em resposta, o príncipe decidiu desobedecer às ordens das Cortes e permanecer no Brasil: era o Fico.
“Como é para o bem de todos e felicidade da nação, estou pronto: diga ao povo que fico.”
A ascensão de José Bonifácio
A decisão do príncipe de permanecer no Brasil e desafiar as Cortes foi produto de um amplo movimento, no qual se destacou José Bonifácio.
Como membro destacado do governo provisório de São Paulo, José de Bonifácio escreveu em 24 de dezembro de 1821 uma carta a D. Pedro, na qual criticava duramente a decisão das Cortes de Lisboa a chamava a sua atenção para o importante papel reservado ao príncipe nesse momento de crise.
No Rio, D. Pedro divulgou a carta, que foi publicada na Gazeta do Rio de 8 de janeiro de 1822, com grande repercussão. Dez dias depois, chegou ao Rio uma comitiva paulista, integrada por José Bonifácio, para entregar ao príncipe a representação paulista. Nesse mesmo dia, D. Pedro nomeou José Bonifácio ministro do Reino e dos Estrangeiros, cargo que este resolveu aceitar depois da insistência do próprio príncipe. Essa nomeação tinha um forte significado simbólico: pela primeira vez o cargo era ocupado por um brasileiro.
A partir desse momento, os Andradas (José Bonifácio e seus irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco) tornaram-se figuras políticas de destaque nacional.
José Bonifácio.
O “Cumpra-se”
Em maio de 1822, a cisão entre D. Pedro e as Cortes aprofundou-se ainda mais: o regente determinou que qualquer decreto das Cortes só poderia ser executado mediante o “Cumpra-se” assinado por ele. Na prática, isso significava conferir plena soberania ao Brasil. Essa medida teve imediato apoio: a 13 de maio, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro conferiu ao príncipe regente o título de Defensor Perpétuo do Brasil.
Enquanto isso, os liberais radicais mantinham-se ativos. Por iniciativa de Gonçalves Ledo e outros, uma representação foi dirigida a D. Pedro para expor a convivência de se convocar uma Assembléia Constituinte. O príncipe acatou a sugestão e decretou a sua convocação em junho de 1822.
José Bonifácio resistiu à idéia de convocar uma Constituinte, mas foi obrigado a aceitá-la. procurou, entretanto, descaracterizá-la, propondo eleição indireta, que acabou prevalecendo contra a vontade dos liberais radicais, que defendiam a eleição direta.
Embora os conservadores tenham obtido o controle da situação e o texto da convocação da Constituinte apresentasse declarações favoráveis à permanência da união entre Brasil e Portugal, as Cortes insistiam: o príncipe deveria retornar imediatamente.
Em 7 de setembro de 1822, impedido pelas circunstância, D. Pedro rompeu definitivamente os laços de união política com Portugal. Culminou, dessa forma, o longo processo de emancipação, iniciado em 1808 com a vinda da família real. A 12 de outubro de 1822, D. Pedro foi aclamado e em 1º. de dezembro do mesmo ano tornou-se o primeiro imperador do Brasil.
A idealização da Independência (7 – setembro – 1822) pode ser vista no quadro de Pedro Américo. (Museu Paulista).
Os excluídos
A emancipação política do Brasil não trouxe nenhuma alteração na secular estrutura social. A enorme população de escravos e de homens livres não proprietários, dispersa pelo Brasil e distante dos principais centros, permaneceu absolutamente indiferente à independência. Entretanto, nos centros urbanos do sul, a massa popular aderiu, em várias ocasiões, a os impulsos revolucionários, mas foi prontamente esmagada por José Bonifácio.
*Aristocracia sf. A classe dos nobres ou fidalgos; fidalguia.
“D. Pedro, a 14 de agosto, seguiu para a terra dos bandeirantes*, chegando a S. Paulo a 25 daquele mês. toda a cidade estava em festa. Das Janelas atiravam flores, sentindo-se na população uma alegria geral.
D. Pedro dissolveu a junta e nomeou uma governo provisório, tendo seguido para Santos a 5 de setembro, donde regressou na manhã do dia 7.
À altura do riacho Ipiranga, e já de volta ao Rio, D. Pedro recebeu o Correio da Corte, que lhe trazia cartas de José Bonifácio e D. Leopoldina. O Correio trazia decretos da Corte de Lisboa com novas e humilhantes imposições. Na sua carta, entre outros argumentos, dizia D. Leopoldina a D. Pedro: ‘Se a independência tem de se fazer que se faça já’.
D. Pedro meditou; vinha adoentado e tinha feito alto para descansar um pouco. Mas, de súbito, amassa o papel que tem nas mãos, pisa-o e braba visivelmente irritado: ‘É preciso acabar com isto!’
Salta sobre o cavalo e marcha em direção do riacho Ipiranga, onde se encontrava o resto da comitiva. A guarda forma. Há um alvoroço, e D. Pedro exclama com toda a força dos pulmões: ‘Laço fora, soldados!’ Caem no mesmo instante todos os laços portugueses. E impetuoso, vibrante, altivo, D. Pedro continua:
‘Camaradas! as Cortes de Lisboa querem mesmo escravizar o Brasil. Cumpre, portanto, declarar já a sua independência. Estamos definitivamente separados de Portugal.’
Ergueu-se no selim, puxou da espada e, entre solene e dramático, bradou:
‘Independência ou morte seja nossa divisa; o recebe ardorosamente. Compõe o hino da independência que é orquestrado e cantado no teatro quando o padre Ildefonso Ferreira, subindo numa cadeira deu gritos de vivas ao 1º. rei do Brasil.
Isto posto, estava o Brasil independente.”
*Bandeirante sm. Bras. 1. Homem pertencente a uma bandeira; 2. Bras. Expedição armada que desbravava os sertões (fins do séc. XVI a começo do XVIII) para aprisionar índios ou descobrir minas.
(PINTO, Luiz, História do Povo Brasileiro, Rio de Janeiro, A Coelho Branco Filho editor, 1984, pp. 227-8).
“Outro efeito da forma pela qual se operou a emancipação do Brasil é o caráter de ‘arranjo político’, se assim nos podemos exprimir, de que se revestiu. Os meses que medeiam da partida de D. João à proclamação da Independência, período final em que os acontecimentos se precipitam, decorrem num ambiente de manobras de bastidores, em que a luta se desenrola exclusivamente em torno do príncipe regente, num trabalho intenso de o afastar da influência das cortes portuguesas e trazê-lo para o seio dos autonomistas. Resulta daí que a Independência se fez por uma simples transferência pacífica de poderes da metrópole para o novo governo brasileiro. E na falta de movimentos populares, na falta de participação direta das massas neste processo, o poder é todo absorvido pelas classes superiores da ex-colônia, naturalmente as únicas em contato direto com o Regente e sua política. Fez-se a independência praticamente à revelia do povo; e se isto lhe poupou sacrifícios, também afastou por completo sua participação na nova ordem política. A Independência brasileira é fruto mais de uma classe que da nação tomada em conjunto.
Quanto o papel representado por D. Pedro, ele é todo ocasional. como se depreende do que acima ficou dito. Regente do Brasil com a partida de D. João, pôde ele com toda facilidade levar adiante os planos do ‘partido brasileiro’, e realizar a separação do país. Constituiu-se assim um mero instrumento das reinvidicações nacionalistas, e a tais circunstâncias fortuitas1 deveu o trono do novel2 império.”
1 Fortuitas: casuais, acidentais.
2 Novel: novo.
(PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil e outros estudos, 5 ed., São Paulo, Brasiliense, 1966, p. 45.)
Uma independência que interessava principalmente às elites. O povo e os escravos não teriam participação efetiva. (Gravura de Debret mostrando um oficial da Corte e uma escrava. IEB – São Paulo).